Por FLÁVIO AGUIAR*, de Berlim
Tenho lido comentários que consideram uma “maluquice” o plano de Trump para “limpar” Gaza de seus escombros materiais e humanos e ali construir uma espécie de Balneário Camboriú, ou nova Riviera Mediterrânea para quem tenha gosto euro-cêntrico.
Sim, é uma maluquice, mas que tem profundas raízes no DNA de formação dos Estados Unidos. E em outro DNA também perverso, como se verá ao longo deste artigo. Desde a ocupação britânica, o futuro Estados Unidos se viu abraços sobre o que fazer com as populações nativas.
A relação entre estas populações e os colonos europeus e seus descendentes era mediada pela expansão capitalista do projeto colonial e pelo sentimento religioso de serem estes herdeiros simbólicos das treze tribos de Israel que haviam deixado o Egito nos tempos bíblicos.
Esta imagem está preservada nas treze estrias brancas e vermelhas que ornam a bandeira norte- americana desde o início. Elas lembram as faixas de nuvens que guiavam as treze tribos de Israel em seu Êxodo pelo deserto, brancas à noite e vermelhas de dia. E justificavam o sentimento de superioridade daqueles colonos sobre os demais povos em torno, fossem os nativos ou os escravos africanos também vindos de além- mar.
A independência das colônias e sua marcha para o oeste, naquilo que se convencionou chamar de “Manifest Destiny”, agravou o conflito entre colonos e nativos, e o cerceamento das liberdades destes e o esbulho de seus territórios.
Esta nova condição inspirou o “Indian Removal Act”, promulgado pelo presidente Andrew Jackson em 1830. O decreto autorizava a remoção “voluntária” ou forçada de populações nativas das terras cobiçadas pelos colonos que avançavam para o oeste. De um modo geral, o decreto possibilitava o deslocamento dessas populações para territórios a oeste do rio Mississipi.
Calcula-se que entre 1830 e 1841 60 mil nativos foram forçados a abandonar seus territórios originais em direção ao oeste ou do sul para o norte, sendo alojados em terras inóspitas e desfavoráveis à sobrevivência.
Esta prática continuou pelas décadas seguintes, abrindo o que a tradição batizou de “A Trilha das Lágrimas”, pois muitos destes migrantes forçados pereceram no caminho, devido a doenças ou às duras condições de vida nos pontos de chegada. Ao longo do tempo, estas reservas territoriais tiveram suas áreas reduzidas. E no século XX houve uma mudança conceitual na distribuição das terras: ao invés da concessão de reservas coletivas, elas passaram a ser concedidas individualmente a proprietários isolados, o que contribuiu mais ainda para a redução das áreas afetadas. Foi a primeira política de “limpeza étnica” da história dos Estados Unidos, algo que está por trás da proposta de Trump para Gaza.
A situação só mudou a partir de 1934, depois da vitória de Franklin Delano Roosevelt na eleição de 1933 e sua política do New Deal, que passou a reconhecer direitos adquiridos pelos povos nativos, estendendo-lhes também cuidados assistenciais em matéria de saúde.
Imagino que este “Indian New Deal” de Roosevelt, como ficou conhecido, seja abominado por Trump e sua trupe como: ”coisa de comunista”.
Mas tem mais. Uma outra grande tradição de planejar deslocamentos forçados pertence ao regime nazista alemão.
A primeira proposta de solução para o “problema judaico” na Alemanha e na Europa ocupada não foi o extermínio. Foi a deportação forçada para Madagascar, então uma colônia da França recém ocupada pelas tropas do III° Reich.
Essa proposta foi formulada por Franz Rademacher, um diplomata alemão nomeado diretor da “Seção Judaica” do Ministério de Relações Exteriores em 1940, depois da tomada de Paris. A proposta foi aceita por Hitler e pelos demais membros do comando nazista. E o encarregado de viabiliza-la administrativamente foi nada mais nada menos do que Adolf Eichmann.
A proposta tinha antecedentes. Já fora defendida por notáveis antissemitas, como o alemão Paul de Lagarde no século XIX, e os britânicos Henry Hamilton Beamish e Arnold Leese no XX. Entretanto a proposta não prosperou. Os nazistas pensavam em pô-la em prática usando como meio de transporte a frota comercial britânica, depois que a Inglaterra fosse ocupada. Porém os aviões da Luftwaffe perderam a batalha aérea para a Royal Air Force, e os britânicos mantiveram seu poderio naval, impedindo a emigração forçada.
Ainda assim, os nazistas pensaram em deslocar os judeus para a Sibéria, depois da invasão da União Soviética pela Operação Barbarossa, deflagrada em 22 de junho de 1941. Imaginavam que a União Soviética desmoronaria em poucas semanas, o que não aconteceu.
Ao fim e ao cabo a proposta de deportação foi substituída pela “Solução Final para a Questão Judaica”, concertada na sinistra Conferência de Wannsee, dirigida por Reinhard Heydrich, em 20 de janeiro de 1942 e secretariada pelo mesmo Adolf Eichmann, também encarregado de viabiliza- la administrativamente.
A atitude de Trump choca, mas não surpreende. O que surpreende, e também choca, é sua recepção pelo comando do governo israelense. Ela vai na esteira de um verdadeiro torcicolo ético, pois demonstra que a inspiração do governo de Netanyahu e seus neo- fascistas é uma complicada operação coletiva de transferência psicológica. Eles agora têm por alvo os “seus judeus”, identificando-se não com as lutas heróicas de sue povo, como no Gueto de Varsóvia, mas com as práticas abomináveis dos algozes de seus antepassados.
*Flávio Aguiar é jornalista, analista político e escritor, é professor aposentado de literatura brasileira na USP. Autor, entre outros livros, de Crônicas do mundo ao revés (Boitempo).