O relatório de 66 páginas da Diretoria de Inteligência Polícia Federal (PF) que analisou as mensagens de WhatsApp, áudios, backups de segurança e arquivos armazenados pelo ex-faz-tudo – e mais alguma coisa – de Bolsonaro, Mauro Cid, divulgado após a retirada pelo ministro Alexandre de Moraes de seu caráter sigiloso, é mais uma peça – e, talvez, a mais reveladora das conhecidas até o momento, que demonstra de forma cabal o que muitos já sabiam: estava em curso um golpe de Estado no país, sob o olhar inquieto e abonador de Jair Bolsonaro.
Não é a primeira vez que o golpismo se insurge contra a democracia no Brasil.
A outra, mais recente, aconteceu exatamente em 1964, precisamente no dia 31 de março, quando parcela diminuta, embora estridente, da cúpula das Forças Armadas, com o aval dos Estados Unidos, cuja frota estacionara à época no mar territorial brasileiro, e com o apoio ativo da maioria parlamentar venal que se aboletava no Congresso Nacional, promoveu um golpe de Estado que infelicitou o país por longos e sombrios 21 anos.
O presidente constitucionalmente eleito João Goulart preferiu exilar-se, apesar da disposição de lideranças políticas e militares de resistir.
Os dados constantes no celular do tenente-coronel Mauro Cid é a confirmação de que as repetidas e cansativas declarações de Bolsonaro de um suposto compromisso de atuar “dentro das quatro linhas”, numa alusão metafórica ao campo de futebol, não passava de conversa fiada, afinal, o ex-ajudante contava com uma confiança canina do ex-capitão, não sendo, por isso mesmo, nada crível que o ex-mandatário nada soubesse, como diz, agora, em sua defesa.
O objetivo era claro: decretar estado de sítio, como se houvesse excepcionalidade para isso. Trata-se, como se sabe, medida prevista em casos absolutamente excepcionais, como o de guerra.
A estratégia repulsiva e controversa, sobre a qual até mesmo figuras do mundo jurídico de viés golpista, como Ives Gandra, foram consultadas, consistia em atribuir às Forças Armadas o tal poder moderador.
O documento da Polícia Federal sinaliza um “passo a passo” do golpe e encontra lógica com a minuta golpista encontrada nos alfarrábios do ex-mnistro da Justiça de Bolsonaro, Anderson Torres, hoje em prisão domiciliar.
INSTAURAÇÃO DE ESTADO DE SÍTIO
O plano justificava-se, segundo seus mentores, pelas chamadas “decisões inconstitucionais do STF” e propugnava, por esse motivo, um estado de sítio, previsto, de acordo com a letra da Constituição Federal, para situações de “comoção grave de repercussão nacional” ou de “declaração de estado de guerra ou resposta a agressão armada estrangeira”.
“Afinal, diante de todo o exposto e para assegurar a necessária restauração do Estado Democrático de Direito no Brasil, jogando de forma incondicional dentro das quatro linhas, com base em disposições expressas da Constituição Federal de 1988, declaro o Estado de Sítio; e, como ato contínuo, decreto Operação de Garantia da Lei e da Ordem”, diz o texto.
Com isso, a medida possibilitaria algumas medidas excepcionais, como a suspensão da liberdade de reunião, restrições à liberdade de imprensa e permissão para requisição de bens e para busca e apreensão em domicílio.
A solicitação é apresentada pelo presidente da República, mas depende de aprovação do Congresso Nacional, cuja maioria os bolsonaristas acreditavam ter.
Além disso, antes de apresentar o requerimento, o presidente precisaria consultar dois órgãos. Um deles é o Conselho da República, composto pelo presidente, o vice-presidente, os presidentes da Câmara e do Senado, o ministro da Justiça e os líderes da maioria e da minoria da Câmara e do Senado, portanto, as vozes dissonantes seriam poucas, segundo, ainda, a avaliação os golpistas.
O segundo órgão é o Conselho de Defesa Nacional, formado também pelo vice-presidente e pelos presidentes da Câmara e do Senado, além dos ministros da Justiça, das Relações Exteriores e da Fazenda e de comandantes do Exército, Marinha e Aeronáutica.
INTERVENÇÃO MILITAR
O plano extraído do telefone de Mauro Cid revela ação coordenada que culminaria com uma intervenção militar, condição para o sucesso do golpe que estava sendo urdido à socapa da sociedade e das instituições democráticas republicanas, inclusive – e, principalmente, após a vitória do presidente Luiz Inácio Lula da Silva nas eleições presidenciais de 2022.
Os comandantes militares teriam que ser convencidos das supostas inconstitucionalidades praticadas pelo Judiciário e, a partir daí, nomeariam um interventor com poderes absolutos, ou seja, após o atropelo da Constituição, tal figura seria erigida para o “restabelecimento da ordem constitucional”, suspendendo, por exemplo, a diplomação de Lula e afastando preventivamente os ministros do STF, especialmente os que compunham à época o Tribunal Superior Eleitoral: Alexandre de Moraes, Cármen Lúcia e Ricardo Lewandowski, que na época integravam o Tribunal Superior Eleitoral (TSE), e em seus postos seriam convocados os substitutos, Kassio Nunes Marques, André Mendonça – os dois indicados por Bolsonaro – e Dias Toffoli.
OPERAÇÃO DE GARANTIA DA LEI E DA ORDEM (GLO)
A PF identificou arquivos no celular de Mauro Cid que desnudam, também, a tentativa de instaurar a Garantia da Lei da Ordem (GLO), que consiste numa operação militar sobre a qual o presidente da República tem competência única e privativa.
Trata-se de uma medida prevista na legislação brasileira nos casos de esgotamento das forças tradicionais de segurança pública diante de graves perturbações à ordem social, algo que explica os motivos do salseiro provocado pelos golpistas no dia da diplomação em Brasília, na Justiça Eleitoral, do presidente Lula e de seu vice, Geraldo Alckmin.
De acordo com o artigo 142 da Constituição Federal, a Lei Complementar 97 de 1999 e o decreto 3.897 de 2001, durante a GLO, é concedida provisoriamente aos militares a atuação com poder de polícia até que a normalidade seja restabelecida.
Tais dispositivos legais fazem previsão de que ações sejam em uma área restrita, obviamente, Brasília, e por tempo determinado, para a preservação da ordem pública, da integridade da população e do patrimônio e do pleno funcionamento das instituições, como se não estivessem funcionando, pois realmente não estavam para os interesses da turba bolsonarista.
TRAMA RECHEADA DE AMEAÇAS A MINISTROS
A trama golpista não se resumiu apenas à tentativa frustrada de desconstituir as instituições democráticas. Elas também desvelaram incontáveis ameaças e insultas aos ministros do STF.
“Evidenciou-se que em diversos momentos dos diálogos foram tratados assuntos relacionados ao cenário político-eleitoral que sucedeu o segundo turno das eleições presidenciais”, diz a PF no relatório.
Em um dos grupos no qual Cid estava, o “Dosssss!”, com militares da ativa, integrantes defendiam a realização de um golpe de Estado e proferiam ataques a Alexandre de Moraes, que também presidia o TSE. Em um aplicativo de conversas, um deles afirmou que a ruptura democrática “já ocorreu”:
“Estejamos prontos… A ruptura institucional já ocorreu… Tudo que for feito agora, da parte do PR (presidente), FA (Forças Armadas) e tudo mais, não vai parar a revolução do povo”. Outro integrante do grupo citou Moraes:
“Vai ter careca sendo arrastado por blindado em Brasília?”.
Em outro trecho de mensagens, participantes de grupos defendem manifestações antidemocráticas e golpe de Estado.
“Se o Bolsonaro acionar o 142 [artigo da Constituição que regulamenta a atuação das Forças Armadas], não haverá general que segure as tropas. Ou participa ou pede para sair!!!”, escreveu um membro em 21 de dezembro do ano passado.
PRESENÇA EM ATOS ANTIDEMOCRÁTICOS
Outra revelação periciada no aparelho de Mauro Cid é a de que havia um obstinado incentivo à participação dos militares nos atos antidemocráticos que ocorriam à época.
Um dos exemplos foi o sargento do Exército Luís Marcos dos Reis, outro ex-assessor de Bolsonaro, preso por ter supostamente integrado o esquema que fraudou cartões de vacinação do ex-presidente, seus familiares e funcionários.
Segundo a investigação da PF, o militar esteve no acampamento no Quartel-General do Exército em Brasília e incentivou a “tomada de poder pelas Forças Armadas”. No relatório, é destacado que o sargento enviou vídeos e imagens com a participação dele nas invasões às sedes dos Três Poderes.
“Eu estou no meio da muvuca! Não sei o que está acontecendo! O bicho vai pegar!”, escreveu em uma das mensagens.
Em seguida, o sargento enviou um áudio, na mesma troca de mensagens, que dizia: “Entraram no Planalto, no Congresso, Câmara dos Deputados, entrou no STF. E quebrou, arrancou as togas lá daqueles ladrão (sic). Arrancou tudo! Foi, foi. O bicho pegou hoje aqui!”.
Mais tarde, por volta de 20h, ele afirmou que já estava em casa e que trabalharia cedo no dia seguinte, mas que “o recado foi dado”.
FORÇAS ARMADAS RECUSARAM ADERIR À AVENTURA GOLPISTA
O mais revelador das mensagens extraídas do aparelho de Mauro Cid é, sem dúvida alguma, a dificuldade que os golpistas e o próprio Bolsonaro estava tendo para obter a garantia que as Forças Armadas, especialmente o Exército Brasileiro, aderisse à trama sórdida.
As mensagens trocadas entre o ex-ajudante de ordens e o coronel Lawand Júnior confirmam o fato.
“Meu amigo, na saída do QG encontro bom o ROSTY, SCmt COTER. Foi uma conversa longa, mas para resumir, se o EB (Exército Brasileiro) receber a ordem, cumpre prontamente. De moto próprio o EB nada vai fazer porque será visto como golpe. Então, está nas mãos do PR (presidente da República).”
Segundo pesquisa realizada pela PF em fonte aberta demonstra que o nome ROSTY pode estar relacionado ao General de Divisão, Subcomandante de Operações Terrestres do Comando de Operações Terrestres do Exército Brasileiro, Edson Skora Rosty. Ele ocupou o posto até a transmissão de cargo realizada em 14 de abril de 2023 .
“Soube agora que não vai sair nada”, escreve o militar para Cid, em outro trecho das degravações. “Decepção irmão. Entregaram o país aos bandidos”, diz então o coronel. A mensagem é do dia 21 de dezembro do ano passado.
Menos de três minutos depois, Cid responde: “Infelizmente”.
Dias antes, no mesmo canal, os dois debateram a ‘necessidade’ de se ‘dar a ordem’ para que um plano golpista descrito em detalhes semanas antes fosse posto em prática.
A trama estava descrita em um documento encontrado pela PF no celular do braço direito de Bolsonaro. O arquivo era intitulado ‘Forças Armadas como poder moderador’.
“CID, pelo amor de Deus, o homem tem que dar a ordem”, suplica o coronel Lawand Junior no dia 10 de dezembro. O mesmo pedido já havia sido feito pelo militar, em áudio, no dia 1º daquele mês. Naquela ocasião, o braço direito de Bolsonaro respondeu que o então presidente não ‘daria a ordem’ por não confiar no ‘ACe’, uma possível alusão ao termo Alto Comando do Exército.
“Assessore e de-lhe [sic] coragem. Pelo amor de Deus”, repete o coronel. Cid então responde: “Muita coisa acontecendo…Passo a passo…”. “Excelente!!!”, se anima Lawand Junior com a confirmação de que o plano teria caminhado.
Cid, braço direito de Bolsonaro, está preso por suspeitas fraudes em cartões de vacinação. Seu celular, apreendido na ocasião, engrossou o inquérito que apura atos antidemocráticos, que incluem as investigações sobre o terrorismo no dia 8 de Janeiro.
Jair Bolsonaro – o dissimulado -, em nota, negou participação em “qualquer conversa sobre um suposto golpe de Estado”. Pelas redes sociais, seus advogados defenderam ainda que Cid, pela função de ajudante de ordens, “recebia todas as demandas que deveriam chegar ao presidente da República”, como “pedidos de agendamento, recados etc”.
Os advogados Bernardo Fenelon e Bruno Buonicore, que defendem Mauro Cid, afirmaram que “por respeito ao Supremo Tribunal Federal, todas as manifestações defensivas serão feitas apenas nos autos do processo”.
A conclusão, após a revelação das mensagens, é uma só: disposição havia por parte de alguns tresloucados bolsonaristas para dar consequência ao golpe de Estado. No entanto, faltou algo que sobrou em 64: apoio e respaldo, não apenas social e político, mas, no caso, principalmente, das Forças Armadas, em especial, do Exército de Caxias.