SETOR ELÉTRICO BRASILEIRO, O EXCÊNTRICO NO PLANETA
ROBERTO PEREIRA D´ARAÚJO
Nota introdutória: Ao buscar informações quantitativas para o artigo, foram percebidos erros nos dados históricos, tanto do ONS, da CCEE e da ANEEL. Foi necessária uma solicitação às instituições para conseguir os dados que faltavam. Esse problema mostra que informações básicas para o entendimento do nosso modelo estão fragmentadas entre órgãos distintos. Além disso, a dificuldade de se obter números que traduzem a trajetória do setor são flagrantes. No caso das tarifas médias, dado da ANEEL, as anteriores a 2003 foram retiradas da página da Agência sem explicações. Nesse caso, usou-se os dados coletados no período em que ainda estavam disponíveis.
INTRODUÇÃO
O que se mostra aqui são dados e fatos históricos que nos levaram a uma situação esdrúxula, perigosa, injusta e que acabou por atingir até a Eletrobras.
Em função de decisões políticas tomadas nos últimos 30 anos, apesar da nossa privilegiada matriz, ostentamos algumas bizarrices que, por sua complexidade, são desconhecidas da sociedade brasileira.
O que se pretende mostrar é que a privatização da Eletrobras não é decorrência apenas do radical quadro político que vivemos nos últimos anos. Há uma trajetória ligada ao modelo mercantil adotado que mostrou desigualdades e instabilidades ligadas a singularidade física do nosso sistema. Infelizmente, correções não foram adotadas e estamos assistindo as consequências onde a privatização da maior empresa de energia da Amárica Latina foi facilitada.
A complexidade é decorrente da tentativa de se implantar um modelo competitivo num sistema físico com singularidades de monopólio natural.
Ninguém está defendendo a instalação desse método, mas é preciso reconhecer que o exótico e complexo do nosso sistema tem relação com essa singular estrutura física.
ENCARECIMENTO DA ENERGIA
Vamos começar pelos sintomas.
Os aumentos do MWh bem acima da inflação mostrado nos gráficos é o cenário vivido pelos consumidores do mercado cativo das distribuidoras. Como ficará claro nos dados expostos, a migração de grandes consumidores para o mercado livre ocorrida a partir de 2003 foi deixando altos custos para os consumidores servidos por distribuidoras.
De 1995 até 2022, em média, o setor residencial suportou uma tarifa com aumento real de 71% (acima da inflação). Aproximadamente R$ 700/MWh sem impostos. Como é uma tarifa média, inclui dados das famílias baixa renda, o que reduz os incrementos de tarifa. Na realidade, o consumidor médio suportou aumento bem maiores.
De 1995 até 2022, em média, o setor industrial suportou um aumento real de 162% (acima da inflação) na sua tarifa média. Aproximadamente, R$ 590/MWh sem impostos. No caso da indústria, como não há um “baixa renda”, o aumento tarifário é mais representativo do que ocorreu nessa trajetória.
Portanto, temos dois ambientes de contratação de energia. O “cativo” e o mercado livre, que não compra a energia contratada pelas distribuidoras. O consumidor livre adquire a energia de outros geradores num sistema complexo e muito pouco transparente quanto a preços e prazos de contratos.
Como se pode perceber nos gráficos, para compensar a alta tarifária que se verificava desde 1995, a intervenção da Lei 12783/2013, iniciada pela medida provisória 579 em setembro de 2012, foi insuficiente .
A imposição de “cotas de Garantia Física” (a ser explicada no texto) para as usinas atingidas, com o intuito de aliviar a alta tarifária dos consumidores, transferiu para as distribuidoras o risco de que essas usinas não consigam gerar a sua cota. Quando há hidrologias favoráveis ou sobra de energia os consumidores cativos podem receber até mais do que a energia cotizada, mas quando o inverso ocorre, altos custos são repassados para as distribuidoras que simplesmente repassam a alta tarifária.
Como vai ficar claro nos dados a seguir, na época dessa intervenção, já havia sinais de que a expansão da oferta de fontes mais baratas era insuficiente e os leilões que ocorreram nesse período foram dominados por térmicas, o que pressionou a tarifa e tornou os baixos preços das hidráulicas da Eletrobras incapazes de compensar a alta de preços do modelo mercantil.
A filosofia da intervenção tarifária por conta de amortizações de usinas antigas é viável e adotada em muitos países. Entretanto, a forma e a dose aplicada aqui isolaram contabilmente as usinas das empresas colocando a despesa administrativa num patamar muito alto. Outros países não adotam esse formato e, na realidade, a amortização é feita contabilmente na estrutura financeira das empresas. Essa política fragilizou a Eletrobras, já que a grande maioria das usinas atingidas eram dela.
UM MODELO DE MERCADO DE ENERGIA EXCÊNTRICO
A maioria dos setores elétricos no mundo tem duas grandezas principais para dimensionar seu suprimento de energia. A capacidade de geração (Potência em MW) e a geração (energia em MWh), que é simplesmente a potência da fonte usada por um certo tempo.
Nós, em função do modelo mercantil adotado desde 1995, temos uma terceira variável, a “garantia física” (GF) em MWh ou MW médios. Essa grandeza, uma quantidade de energia, é determinada de forma extremamente complexa e sujeita a critérios acordados no mercado, mas com significativo grau de subjetividade.
Segundo a EPE (Empresa de Pesquisa Energética), “A garantia física determina a quantidade de energia que um equipamento de geração consegue suprir dado um critério de suprimento definido.” Isso significa que esse valor não está registrado nas máquinas e nem representa uma energia gerada em algum período. É uma espécie de certificado.
Ainda segundo a EPE, “a garantia física define a quantidade máxima de energia que um equipamento pode comercializar”.
Segundo a EPE, “no caso dos empreendimentos hidrelétricos, e dos termelétricos de custo variável unitário (CVU) não nulo, despachados centralizadamente pelo ONS, a garantia física é função de cada contribuição para a máxima quantidade de energia possível de ser suprida pelo sistema, como um todo, dado critério de garantia de suprimento.
“Já no caso dos empreendimentos eólicos e solares, a garantia física de energia é calculada tendo como base dados de produção certificados por entidades independentes.”
Isso significa que, para grande parte das usinas, a garantia física é determinada a partir de uma análise da geração do total do sistema. Na realidade, essa grandeza é uma “cota parte” da produção total analisada sob uma ótica global. Isso deixa evidente que, mesmo sob uma visão mercantil, a característica de monopólio natural tem que ser respeitada.
Esse conceito é um dos mais incompreendidos entre consumidores e até entre analistas. Em qualquer sistema usinas não vendem exatamente a energia que geram, pois há um sistema interligado que recebe a geração que necessita em cada momento. Entretanto, nenhum sistema tem diferenças tão significativas quanto o brasileiro. Aqui, função da predominância hidroelétrica, a lógica operativa pode ocasionar usinas que não geram e assim mesmo vendem energia.
Relembrando que o que as usinas vendem é limitado pela garantia física.
Portanto, ao contrário das outras unidades cujo valor do sistema é obtido pela soma das partes, a GF é uma divisão do total. Outro ponto importante é que a GF atribuída a uma usina depende da performance de todo o sistema interligado segundo um critério. Se o critério é alterado, esse valor influente na comercialização pode se alterar.
Esse critério de garantia depende de números subjetivos. Por exemplo, o custo, em R$/MWh, para o evento déficit de suprimento de energia, ou seja, o quanto custa para a sociedade a insuficiência da oferta de energia elétrica. Em 2022 o valor adotado foi de R$ 7.643,82/ MWh. Evidentemente, mudanças nesse valor afetam o “critério de suprimento” adotado na operação e no planejamento do sistema.
Outro exemplo de valor subjetivo determinante da modelagem adotada é a taxa de desconto de valores futuros, uma espécie de taxa de juros interna do setor. A ANEEL fixa em 12% a taxa de desconto adotada na otimização da operação, mas a EPE adota 8% a nível de planejamento. Essa diferença exemplifica o grau de subjetividade inclusa nos critérios do modelo.
É essa grandeza, GF, que define a participação no mercado. Se uma usina tem uma geração física menor que sua GF, ela tem que liquidar essa diferença por um preço determinado por um modelo matemático chamado PLD (Preço de Liquidação de Diferenças). Se sua geração for maior que sua GF ela recebe a diferença valorada pelo PLD.
Mas, singularmente, esse preço é muito semelhante ao custo marginal de operação (CMO) uma visão de custo sob a ótica do Operador Nacional do Sistema (ONS), que não participa da comercialização.
Como se pode ver abaixo, a curva em vermelho é o CMO da região sudeste e centro oeste disponibilizado pelo ONS. A curva azul é o PLD da mesma região em valores mensais divulgado pela CCEE (Câmara de Comercialização de Energia Elétrica).
A principal diferença é que o PLD tem limites superiores e inferiores arbitrados, mas o comportamento temporal é o mesmo.
O CMO é a “referência” para o PLD. Isso já significa uma singularidade não observada em outros sistemas, pois o PLD não é fruto de competição. Aqui, sua referência é um custo marginal de operação determinado pelo operador.
No sistema brasileiro, se a visão de custo do operador influência o “mercado”, há uma predominância de valores muito baixos (2003 – 2012), uma característica evidente no gráfico. Contudo, quando ocorrem aumentos bruscos como em 2008, 2014 e 2021, é comum haver judicializações por parte dos agentes comercializadores contestando a liquidação. Até hoje há inadimplências não resolvidas nessa liquidação.
A trajetória registrada em dados.
A partir desse entendimento, vamos examinar o que ocorreu na vigência desse modelo.
Por exemplo, abaixo, a comparação da geração hidráulica total com a garantia física (GF) associada às hidráulicas.
Fica evidente que de 2004 até 2013 as hidráulicas geraram bem acima de sua garantia física e após 2013 a situação se inverte.
Basta olhar o gráfico do PLD para perceber que as hidráulicas geraram acima de sua GF sob um “preço de referência”, PLD, extremamente baixo. Uma geração de energia sub-remunerada, sendo que a maior parte das usinas afetadas eram da Eletrobras.
Vejam abaixo o que ocorre com as térmicas. Praticamente o inverso das hidráulicas. Até 2013, geração bem menor do que a GF associada.
Ou seja, a possibilidade de comercialização das térmicas é bem maior do que sua geração. Isso significa que essa GF associada não é gerada pelas térmicas. Até 2012, elas venderam energia hidráulica que aparece sobrando no gráfico anterior.
Após 2013 a geração térmica aumenta, mas em função dos altos custos, ainda fica abaixo da GF associada. Evidentemente, essa grande sobra de garantia física das térmicas foi coberta por geração hidráulica até 2013.
Assim, os preços baixos do modelo incentivaram a corrida de consumidores para o mercado livre, que, em apenas 5 anos atingiu cerca de 26% do consumo total do país e hoje já alcança mais de 35%. O número de comercializadores, meros intermediários, já supera 500 empresas.
Mas, o que se pode observar quando se compara a garantia física total com o consumo total em MW médios? No gráfico 6, é possível perceber que há uma sobra de GF de 2004 até 2009, mas, de 2010 até 2014 o consumo total tangencia a GF e até a ultrapassa em alguns meses. Relembrando, a Garantia Física é o limite de comercialização da energia.
Essa tangência mostra que, fruto dos baixos preços do PLD no período 2004 – 2009, não houve expansão suficiente da oferta e o critério mostra um estrangulamento estrutural. Como se pode verificar no Gráfico 3, os preços no mercado livre chegaram a atingir 1/10 do valor pago no mercado cativo.
Em função de hidrologias muito favoráveis em 2009, 2010 e 2011, esse “aperto” de oferta não foi percebido. Aliás, essa é uma característica do sistema brasileiro, pois altos registros hidrológicos “mascaram” situações de constrangimento de oferta.
É possível perceber também que, nos últimos anos, o consumo não cresce mais com as taxas anteriores. Dados do ONS mostram que até 2014 a taxa média de crescimento anual era de 3,7%. Após 2015 ela se reduz para 1,6%.
No gráfico a seguir é possível ver que houve expansão de eólicas e hidráulicas a partir de 2016. Mas é preciso notar que as usinas hidroelétricas Belo Monte, S. Antônio, Jirau, Teles Pires, Baguari, Foz do Chapecó, Dardanelos, Retiro Baixo e outras foram construídas com parceria minoritária da Eletrobras. Provavelmente, não sairiam do papel sem esse esforço da estatal.
Como há subsídios para as fontes eólicas, solares e PCHs no mercado livre, é preciso reconhecer que a expansão da oferta não ocorreu por iniciativas totalmente independentes do capital privado.
Segundo a base de dados SIGA da ANEEL (https://dadosabertos.aneel.gov.br/dataset/siga-sistema-de-informacoes-de-geracao-da-aneel) é possível constatar que, do total de usinas hidroelétricas brasileiras, apenas 8% delas surgiram de iniciativas privadas. A maioria significativa na mão do capital hoje foram compradas prontas ou construídas em consórcio com estatais, sendo a principal delas a Eletrobras.
Segundo dados do Balanço Energético do Ministério de Minas e Energia, que inclui térmicas não contabilizadas nos dados do ONS, de 1996 até 2022 a capacidade térmica foi multiplicada por 3. Essa é uma das razões do encarecimento da tarifa brasileira.
Também é possível constatar através das séries setoriais do BNDES que o setor elétrico brasileiro é o recordista de financiamentos desde 1995. A preços de março de 2023, o total de dispêndios para o setor atingiu R$ 543 bilhões, sendo 36% de todo o financiamento da infraestrutura.
Ninguém está defendendo que não haja financiamento para um setor tão importante. O que se está tentando mostrar é que a expansão da oferta de energia de forma independente oriunda do capital privado não ocorreu como é comumente exposto.
CONCLUSÃO
Com base nesses dados, não é difícil concluir que as excentricidades do modelo mercantil resultaram em investimentos insuficientes originados do mercado livre e do capital privado.
Ao contrário do que é frequentemente divulgado na mídia, o quadro atual de sobre oferta é muito mais resultante de uma demanda que não cresce em função do nosso reduzido incremento de PIB.
Toda essa trajetória resultou numa fragilização financeira que, em função do quadro político dos últimos 6 anos, provocou a privatização da Eletrobras.
Além das irregularidades e conflitos de interesse entre o capital privado e o interesse público causados pela esdrúxula capitalização que despreza o fato de que não há lógica em ter um acionista que possui 43% das ações, mas renuncia a 33%, é preciso não esquecer que, independentemente do resultado dessa contenda, o bizarro e injusto modelo vai ser a nossa herança. As distribuidoras, que deveriam ser as alavancas de aumento de oferta, estão enfrentando sérios problemas com a desigual oportunidade entre o bizarro mercado livre e seus consumidores.
Mesmo sendo baseado em dados, o argumento de que o capital privado não teve a performance alardeada tem estado fora da pauta da imprensa e até de grupos que criticam a privatização. Evidentemente, é uma ausência que, de maneira sutil, livra o capital privado de responsabilidades que deveriam lhe ser atribuídas.
Artigo publicado originalmente no Instituto Ilumina