Redução do preço dos combustíveis e fim do esdrúxulo PPI indicam que empresa já não se submete ao neoliberalismo extremo. Mas falta o essencial: livrá-la da ditadura dos rentistas e colocá-la a serviço de um novo projeto de país
O governo Lula livrará a Petrobras das garras dos rentistas? O imenso poder da empresa – cujos lucros, em 2022, foram iguais ao dobro do obtido pelos cinco maiores bancos brasileiros juntos – poderá impulsionar a reconstrução nacional em novas bases? Um fio de esperança reapareceu esta semana. Na terça-feira (16/05) acabou enfim o PPI, a política de preços que, imposta desde o governo Michel Temer, obrigava a estatal a vender seus combustíveis pelo mesmo preço dos importados.
Um dia depois, anunciou-se uma redução expressiva nas cotações da gasolina (-12,5%), no óleo diesel (-12,5%) e no gás de cozinha (-21,42%). Foi um alívio. O preço dos combustíveis tem enorme impacto sobre a inflação dos mais pobres. A política anterior gerava enorme imprevisibilidade econômica, chegando a resultar, em determinados períodos, em quase um preço novo a cada dia. E a equiparação obrigatória às cotações internacionais – quando a Petrobras pode produzir por muito menos – abria espaço para uma concorrência indesejável. Empresas privadas importavam derivados que o Brasil aprendeu a produzir há décadas, estimulando a ociosidade das refinarias nacionais. Por tudo isso, o fim do PPI foi saudado inclusive por críticos ácidos da política de petróleo, como o engenheiro Ildo Sauer, ex-diretor de Negócios em Gás e Energia da estatal. Ele equiparou o mecanismo anterior a um “delírio fundamentalista dos rentistas, interessados em extrair até o último centavo do petróleo brasileiro”.
Mas bastará reduzir os preços dos combustíveis para colocar a Petrobrás a serviço das maiorias? A jornalista Maria Cristina Fernandes notou que a mudança de orientação foi vista com tranquilidade pelos acionistas privados da empresa. Os papéis subiram. Como o príncipe de Salina, imortalizado em “O Leopardo”, os rentistas parecem esperar que “algo mude, para que tudo permaneça como está”.
O próprio Ildo explica o porquê. A ligeira baixa nos preços desta semana não será suficiente para a farta renda proporcionada pelo petróleo brasileiro. A riqueza natural do país e as tecnologias desenvolvidas pela Petrobrás permitem extrair por ano 1 bilhão de barris – 75% dos quais pela estatal. Como o óleo brasileiro é abundante, o custo total de extração não passa de 8 a 10 dólares por barril em média o que resulta num ganho hoje próximo a 70 dólares. Mesmo após o pagamento de impostos, royalties e despesas financeiras, resta à estatal um lucro que chegou em 2022 a R$ 188 bilhões. O xis da questão está em o quê se faz com ele.
Uma semana antes de anunciar o fim do PPI, a Petrobrás divulgou seu balanço relativo ao primeiro trimestre do ano – já sob o governo Lula, portanto. Os números foram analisados pelo Ineep — Instituto de Estudos Estratégicos em Petróleo — e revelam que as políticas introduzidas por Temer e Bolsonaro persistem, inclusive por servirem a interesses muito poderosos.
Em apenas três meses, a estatal lucrou R$ 38,1 bilhões. A lei das Sociedades Anônimas obriga-a a distribuir 25% deste valor aos acionistas. Porém, a exemplo do que tem feito há pelo menos três anos, a Petrobras ultrapassou de longe este piso, distribuindo 64% de seus lucros, ou R$ 24,7 bilhões. Segundo os cálculos de Ildo, o valor equivale a dois terços do necessário para construir uma refinaria com capacidade de processar 1 milhão de barris por dia, gerar milhares de empregos e tornar o Brasil, de novo, autossuficiente na produção de combustíveis. Em vez disso, a quem estes lucros beneficiaram?
O Estado brasileiro detém, por lei, a maioria das ações com direito a voto na Petrobrás, mas não é o maior acionista. Somados todos os tipos de papéis, os acionistas privados controlam 63,31% do capital. Deste total, 70% estão nas mãos de estrangeiros, em geral mega-fundos de pensão como o BlackRock. São eles que abocanharam a parte do leão dos lucros sob Temer e Bolsonaro, e continuaram a fazê-lo nos três primeiros meses de Lula.
Em contrapartida, persistiu também, neste período, a redução dramática dos investimentos da Petrobrás. Eles limitaram-se a R$ 2,48 bilhões. A Associação dos Engenheiros da Petrobras adverte que este valor não é suficiente sequer para repor as reservas de petróleo da empresa. Ou seja: para encher os bolsos de seus acionistas privados, a estatal brasileira compromete seu próprio futuro. A tabela abaixo, também elaborada pela Aepet com base em dados da companhia, escancara este absurdo. Entre 2005 e 2014, o que ela transferia aos acionistas girava em torno de um quinto do que investia em si mesma. A partir de 2021, porém paga-se aos rentistas entre sete e oito vezes mais do que se investe. Um passo indispensável para que a Petrobras possa se ligar a um novo projeto nacional, portanto, é alterar radicalmente a política de distribuição de lucros, preterindo os especuladores em favor de ações ligadas a um novo ciclo de desenvolvimento do país.