Desenhos foram feitos de memória por Abu Zubaydah, encarcerado e torturado desde 2002, cujos detalhes são tão precisos que os rostos dos torturadores tiveram de ser tarjados para ‘proteger suas identidades’. Cobaia dos experimentos da CIA, ele é conhecido como “prisioneiro para sempre” por jamais ter sido acusado ou libertado
O campo de concentração e tortura dos EUA em Guantánamo voltou à berlinda com a publicação, pelo jornal britânico Guardian, do relatório “Torturadores Americanos: Abusos da CIA e FBI em Locais Obscuros e em Guantánamo”, que ressalta a série de 40 desenhos da tortura, feitos de memória por Abu Zubaydah, encarcerado há 21 anos sem acusações e sem perspectiva de libertação, o que o fez conhecido como o “prisioneiro para sempre”.
O relato “mais abrangente e detalhado já visto” sobre a depravação da CIA em seus centros de tortura, reconheceu o Guardian. Na semana passada, o grupo de trabalho da ONU sobre Detenção Arbitrária pediu que Zubaydah fosse “libertado imediatamente”, considerando sua detenção como “crime contra a humanidade”. Os esboços de Zubaydah – acrescenta o Guardian – fornecem um registro visual único do uso da tortura pelo governo dos EUA após o 11 de setembro já que fitas de vídeo dele sendo torturado, filmadas pela CIA, foram destruídas em violação a uma ordem judicial.
Escrito pelos professores de Direito da Universidade Seton Hall (Nova Jersey), Mark Denbeaux – que também é advogado de Zubaydah e recebeu dele os desenhos -, e de Clínica Psiquiátrica da Universidade da Califórnia (São Francisco), Jess Ghannam, o relatório detalha as torturas, humilhações sexuais e religiosas e terror psicológico prolongado a que as cobaias do experimento da CIA foram submetidas. No caso de Zubaydah, em antros da CIA na Polônia e Lituânia entre 2002 e 2006 e, depois, no campo de Guantánamo.
COBAIA DO PROGRAMA DE TORTURA DOS EUA
“Abu Zubaydah é o garoto-propaganda do programa de tortura dos Estados Unidos”, afirmou o professor Denbeaux. Ele foi a primeira pessoa a ser torturada, tendo sido aprovada pelo Departamento de Justiça com base em fatos que a CIA sabia serem falsos, acrescentou. “Seus desenhos são o repúdio final ao fracasso e aos abusos da tortura.”
São imagens que fornecem “uma visão única e marcante de um período terrível da história dos Estados Unidos”, em relação ao qual as mais altas instâncias de Washington, e em particular a CIA e o FBI, fizeram de tudo para ocultar.
Zubaydah, 52, foi sequestrado no Paquistão em março de 2002. Ele foi a primeira vítima do que viria a ser o uso generalizado de tortura pelos EUA contra suspeitos de terrorismo, a “doutrina W. Bush”.
Inicialmente, os EUA alegaram que Zubaydah era um dos principais agentes da Al Qaeda, mas acabaram forçados a admitir que ele sequer era do grupo terrorista, revelou Denbeaux. “Torturaram o cara errado e foram em frente de qualquer maneira para obter permissão para torturar outras pessoas”, acrescentou. Sob W. Bush, os EUA passaram a declarar que, na sua “guerra ao terror”, não estariam obrigados a seguir convenções internacionais contra o tratamento desumano de prisioneiros.
DE REVIRAR O ESTÔMAGO
Os desenhos são de revirar o estômago. Zubaydah ameaçado de estupro anal e de mutilação genital; ameaçado com uma furadeira elétrica; submetido a simulação de afogamento, em um caixão em meio as próprias fezes – foram 83 sessões de ‘waterboarding’; arremessado violentamente contra a parede (“walling’, no jargão dos torturadores); humilhado nu diante de uma interrogadora, como se repetiria depois em Abu Graib; e o “vórtice”, uma seqüência alucinada de múltiplas “técnicas” de tortura por 24 horas visando desestruturar a vítima. O preso também desenhou uma ameaça de profanação do livro sagrado muçulmano, o Alcorão.
Para a advogada do preso, Helen Duffy, o parecer do grupo de trabalho da ONU sobre Detenção Arbitrária condiz com o relato visual de Zubaydah sobre sua tortura e fornece um lampejo de esperança. “Os desenhos são uma representação poderosa do que aconteceu com ele e são notáveis, visto que ele não conseguiu se comunicar diretamente com o mundo exterior”, disse ela. “A única coisa que o manteve encarcerado foi o silêncio e a escuridão, e agora a luz do sol está brilhando sobre este prisioneiro para sempre”, reiterou Denbeaux.
Outra fonte de revelações sobre esse período negro, diz o Guardian, o relatório de tortura de 6.700 páginas do comitê de inteligência do Senado norte-americano, permanece secreto quase uma década após ficar pronto. Embora esse relatório haja demonstrado – como ficou patente no resumo divulgado pelo comitê – que o abuso de Zubaydah e outros detidos “não conseguiu obter nenhuma nova inteligência”, a tortura “não funciona”.
COMENTÁRIOS AOS DESENHOS
À contundência dos desenhos se somam os comentários sobre a tortura feitos pelo “prisioneiro para sempre” Zubaydah. Abaixo, uma breve mostra dos adendos dele aos 40 desenhos.
ESPANCAMENTO – “Eles entravam repentinamente na cela do prisioneiro e começavam a acertá-lo contra a parede sem nenhuma toalha ou mesmo luvas e deliberadamente o golpeavam com força na nuca e nas costas muitas vezes até que ele desmaiasse. Então eles o acordam com água fria e continuam batendo mesmo que ele não desmaie, eles vão começar a esbofetear seu rosto enquanto fazem perguntas e xingam-no verbalmente com linguagem obscena e continuam a bater forte em sua cabeça, costas e nádegas até cair no chão”.
AFOGAMENTO – “Eles o colocam em um caixão de madeira por um longo tempo, até que ele urina em si mesmo. Suas mãos estão atrás das costas ou ele está contido na frente. Se ele foi contido pela frente, ficará assim por dias. Eles o deixam afogado em seus dejetos… Durante esse tempo o investigador pergunta a ele e o ameaça, então o deixa, até que a água chegue ao nariz, boca, e então ele começa a se mover fortemente com angústia, tossindo [para parar] o afogamento… O ciclo se repete, e ele vai ficar com medo de se afogar o dia todo.
VÓRTICE – “Este desenho mostra o Vortex – o vórtice de concisão, dor, estresse, fome e frio onde eles colocam o detento em 24 horas por dia de intensa tortura, que continua por longas semanas ou meses… Eles usam um método de tortura específico, em nesse caso bater com pau em tempo de muito frio, assim a dor vai dobrar, e eles focam em bater até o preso quase desmaiar, ou mesmo desmaiar de verdade… Então eles começam a se concentrar em outro método de tortura por uma hora. Na próxima hora eles usam um terceiro método e assim por diante … durante todo o dia e durante toda a duração da tortura, pelo tempo que for necessário”.
FURADEIRA ELÉTRICA – “Eles estavam abrindo a porta da minha cela (em que eu fico trancado 24 horas por dia) apenas quando os interrogadores/ torturadores entraram. Eles abriram a porta da “cela” da pessoa que vão torturar com a furadeira, então pude ouvir a furadeira e os gritos, implorando e chorando de horror do irmão que está sendo torturado. Quando desligaram a furadeira depois de várias horas, pude ouvir o irmão torturado ainda gritando, implorando e chorando… “Perfuraram a cabeça do irmão?!! Eles perfuraram seu estômago, seu pé ou seu traseiro?!! Usando a furadeira?!! Todas essas perguntas continuaram passando pela minha cabeça por dias e meses até que outro dia eles voltaram e usaram o mesmo método: ameaça com furadeira. Os mesmos sons de horror voltam, e sons de loucura voltam à minha cabeça com novas perguntas: ele é o mesmo irmão?!! Ele não morreu? Eles não o mataram? Ou este é outro irmão diferente do primeiro? Quem é o segundo? E quem será o terceiro? Serei eu?”.
SOBRE O TPI E SEUS MANDADOS
Outra pergunta que as denúncias de Zubaydah em forma de desenhos suscitam é onde está a punição da justiça para quem ordenou a tortura e para os torturadores que a cometeram? Dick Cheney e Donald Rumsfeld já estão escoiceando no inferno, mas e W. Bush? Por que o Tribunal Penal Internacional (TPI) não determina um mandado de prisão para W. Bush? Ou, quem sabe, para Gina Sanguinária? John Bolton?
Os desenhos não são prova suficiente, que tal então o vídeo do assassinato colateral, saído dos arquivos do Pentágono, um helicóptero Apache norte-americano metralhando e matando civis desarmados em Bagdá, inclusive dois jornalistas da Reuters, em 2007?
Em 2008, o presidente Barack Obama prometeu fechar o campo de concentração de Guantánamo, que funciona até hoje. Não puniu nenhum torturador, mas perseguiu os que denunciaram a tortura.