Intensa. Dramática. Certeira. Colérica. Irônica. Mordaz. Essas são algumas das características que têm feito da economista política Maria da Conceição Tavares, que completa 93 anos nesta segunda-feira (24/4), um fenômeno das redes. A influência digital, que diverte a professora, porém, não tem se estendido, infelizmente, a um resgate de sua produção intelectual e acadêmica.
Enquanto as editoras brasileiras se esmeram na publicação de livros sobre economia e política de viés liberal, como se houvesse apenas uma interpretação possível do mundo, a obra da economista e professora que ajudou a formular o país a partir do governo JK (1956-1961) e formou cinco gerações de economistas segue fora de catálogo. E já não conta, é de se lamentar, com a mesma presença no meio acadêmico, exceto em espaços como o Instituto de Economia da UFRJ e da Unicamp, cuja tradição ela própria ajudou a estabelecer.
Essa ausência constitui, antes de tudo, um prejuízo para as atuais gerações. E nunca foi tão gritante como agora, com o cenário de crise pelo qual o Brasil e o mundo atravessam. Suas análises estruturais reverberam em questões hoje latentes, como a batalha em torno da taxa Selic, os juros básicos da economia, administrada pelo Banco Central (BC), a luta pela reindustrialização em oposição à financeirização da economia e a recuperação dos salários no Brasil. Assim como em questões globais, como a tentativa da China e da Rússia de criar um novo sistema de pagamentos global que enfrente a hegemonia do dólar como única moeda do comércio mundial.
A construção de uma democracia tropical, dentro de uma economia desenvolvida e industrializada, nos marcos de um pacto entre o setor produtivo e os trabalhadores, norteou toda a vida de Conceição Tavares. Era, na verdade, sua quimera ao desembarcar no Rio de Janeiro, em abril de 1954, ainda uma jovem matemática que fugia do ambiente sufocante da ditadura de Antonio de Oliveira Salazar (1889-1970). Quatro meses depois, Getúlio Vargas (1882-1954) cometeria suicídio, dando fim à crise que arrastava seu governo, que buscava precisamente uma aliança entre os trabalhadores e os setores produtivos nacionais.
Tal crise se estende até a posse de JK (1902-1976), quando o país retoma as ideias de desenvolvimento e de uma democracia dos trópicos. A economista vai trabalhar, então, em um dos grupos setoriais do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico, o BNDE, como era então chamado o atual BNDES. Presidido pelo economista Roberto Campos – que se definia à época como um liberal-desenvolvimentista –, a instituição tinha por intuito formular políticas para induzir o desenvolvimento de cada setor, estimulando a economia como um todo. O BNDE elaborou os primeiros dados referentes à desigualdade brasileira, que escandalizaram a economista.
O golpe de abril de 1964 colocaria Campos e Conceição em campos opostos. O principal intuito da ditadura recém-instaurada era barrar as reformas sociais e econômicas que o presidente João Goulart visava implementar. Para isso, reprimiu sem piedade a forte organização popular que havia no país – foram mais de 20 mortos apenas em 1964, e desaparecidos, a maior parte de integrantes de movimentos trabalhistas rurais e urbanos.
Com o economista Octávio Gouveia de Bulhões (1906-1990), que havia sido professor de Conceição, à frente do Ministério da Fazenda, e Roberto Campos (1917-2001) à frente do Planejamento, a ditadura empreendeu uma série de mudanças econômicas de caráter liberal. Um de seus principais pontos foi a criação do Banco Central do Brasil, luta antiga de Bulhões, que pretendia estruturar um sólido mercado financeiro nacional disposto a financiar os investimentos brasileiros.
A lei bancária, de 1968, permitiu a formação dos chamados “conglomerados financeiros” nacionais, que vão exercer forte influência já nesse período, mas em especial a partir dos anos 1980. Houve ainda a Lei do Mercado de Capitais, aprovada em 1965, que servia de estímulo à acumulação nacional. Sobre os efeitos dessas medidas, Conceição escreve um de seus textos mais importantes, “Acumulação financeira, concentração e centralização do capital”, presente em sua principal obra, Da substituição de importações ao capitalismo financeiro: ensaios sobre a economia brasileira, publicada originalmente em 1972 e atualmente fora de catálogo.
Não se trata, por suposto, da primeira análise sobre o setor financeiro na historiografia econômica brasileira, mas é o primeiro texto analítico sobre o início da financeirização e seus efeitos dentro do marco do capitalismo moderno brasileiro. No texto, a autora define o “processo de acumulação financeira” como “a capitalização de rendas obtidas a partir de títulos financeiros que constituem ‘capital’ apenas no sentido genérico de um direito de propriedade sobre uma renda”.
A renda retirada deste capital “não repousa, diretamente, no processo de produção”, mas, sim, no direito de participação de um excedente gerado por uma empresa ou economia, podendo ser ele um título de renda fixa, que vai pagar um valor pré-determinado, ou uma ação, que vai pagar uma renda variável. Neste caso, afirma a autora, “o valor do capital pode flutuar intensamente segundo as características do mercado de valores, a ‘confiança’ do público, a situação econômica das empresas e a sua própria política de distribuição de lucros”.
Com as medidas da dupla Campos-Bulhões, o Brasil viveu uma forte expansão financeira. Como registrou a própria Conceição no artigo,
De 1969 para cá, o chamado mercado de capitais tornou-se, assim, eufórico, através da especulação realizada com ações de empresas já existentes, dos lançamentos de novas ações e, mais recentemente, com a intensificação do processo de abertura de empresas.
Na análise realizada das taxas de lucro entre as 615 maiores empresas brasileiras, “é enorme a diferença entre a taxa de rentabilidade média do setor financeiro e dos demais setores produtivos”. Enquanto
os bancos estatais e os bancos de investimento apresentam em seus balanços de 1970 taxas de lucro líquido superiores a 50%, e as demais financeiras, taxas superiores a 30%, a rentabilidade média para o conjunto das empresas da amostra é de apenas 11,5%, apresentando alguns setores, como o químico, farmacêutico e plástico, taxas negativas.
Não é de hoje, portanto, que os ganhos com a chamada especulação ou “tesouraria” superam os ganhos produtivos. Nem são eles processos excludentes, como creem alguns setores da esquerda, mas processos que correm de maneira concomitante. Cabe ao Estado atuar como planejador para impedir que a financeirização tome o setor produtivo. Foi o que aconteceu com a ida de Antonio Delfim Netto para a Fazenda, à época em que a ditadura baixa o AI-5 de forma a recrudescer a repressão e há uma mudança na política econômica do governo.
Após breve período de reformas microeconômicas de caráter liberal, a ditadura volta-se aos grandes projetos de infraestrutura, de fomento econômico por meio da oferta, de modo a dinamizar a economia por intermédio do desenvolvimento industrial e produtivo, permitindo, assim, um novo salto adiante no processo da industrialização e da urbanização brasileiras.
Antes disso, Conceição havia protagonizado um dos mais célebres embates econômicos da história brasileira com o economista e colega da CEPAL (Comissão Econômica para América Latina e o Caribe) Celso Furtado, ex-ministro da Fazenda de Jango quando da época do golpe de 1964. Diante da estagnação econômica verificada em meados dos anos 1960, Furtado em Desenvolvimento e estagnação na América Latina: um enfoque estruturalista defendia que o modelo substitutivo de importações – ou seja, a implementação de uma indústria local que produzisse os bens antes importados pelo país – estava esgotado sem mesmo ter completado o que prometia: a superação do subdesenvolvimento. Não havia, pois, saída para o desenvolvimento brasileiro e latino-americano.
Conceição, em colaboração com José Serra (ele mesmo), escreveu aqui um dos capítulos mais brilhantes de sua obra ao esclarecer que o que parecia crise, ou seja, as limitações do modelo substitutivo de importações, constituía a própria essência da economia brasileira e latino-americana, estando a brasileira em vantagem relativa em comparação com seus pares. “Marginalidade, desemprego estrutural, infraconsumo etc. não constituem em si mesmo, nem necessariamente, problemas fundamentais para a dinâmica econômica capitalista”, afirma em “Estagnação ou crise?”, parte do ensaio “Além da estagnação”, também presente em Da substituição de importações ao capitalismo financeiro.
Segundo os autores,
O processo capitalista no Brasil, em especial, embora se desenvolva de modo crescentemente desigual, incorporando e excluindo setores da população e estratos econômicos […] conseguiu estabelecer um esquema que lhe permite autogerar fontes internas de estímulo e expansão que lhe conferem dinamismo.
Assim sendo, a crise dos anos 1960, realizada devido ao esgotamento do modelo substitutivo de importações e do Plano de Metas de JK, era fruto do próprio sucesso da etapa anterior e não correspondia ao todo da economia, mas aos setores populares e médios, numa espécie de “destruição criativa”, que os “engolia” conforme o próprio capitalismo brasileiro avançava.
Como afirmam,
enquanto o capitalismo brasileiro desenvolve-se de maneira satisfatória, a nação, a maioria da população, permanece em condições de grande privação econômica, e isso, em grande medida, devido ao dinamismo do sistema.
Em outras palavras, o país vai bem, mas o povo vai mal. Uma análise extremamente contemporânea, num país em que os lucros continuam a subir ante 33 milhões de brasileiros passando fome e 120 milhões em insegurança alimentar, para uma população aproximada de 215 milhões de pessoas.
A análise de Conceição comprovar-se-ia acertada com o “milagre econômico” de Delfim Netto – período em que o Brasil cresceria a taxas que hoje sequer a China é capaz de alcançar –, sem, no entanto, haver a mesma correspondência do ponto de vista da distribuição da renda. Ainda assim, o próprio dinamismo econômico da época levou à criação de uma nova classe trabalhadora urbana brasileira, representada pelo sindicalismo do ABC paulista, de onde emergiu Lula. (Ironicamente, a ditadura, que surgiu para destruir o movimento operário ascendente dos anos 1960, acabaria, em parte, sendo destruída por um novo movimento urbano de trabalhadores.)
Esse “milagre” foi mantido até 1979, quando o presidente do Federal Reserve (o Banco Central dos Estados Unidos), Paul Volcker, iniciou um ciclo de expansão da taxa básica de juros dos EUA, levando o país e o mundo – principalmente os países latino-americanos – a uma crise tremenda. O país já vinha em mau passo desde o final da década de 1960. A situação se agravou com a decisão do então presidente Richard Nixon, em seu primeiro governo, de desvincular a moeda norte-americana do ouro, encerrando assim o padrão monetário ouro-dólar, ou seja, não seria mais necessário nenhum lastro metálico para a moeda norte-americana. Isso levou a uma brutal desvalorização do dólar, em um contexto de estagnação da economia estadunidense e altos índices de inflação.
Diante da chamada “crise do dólar”, o Fundo Monetário Internacional (FMI) – entendam-se os principais países europeus e o Japão –, chegou a colocar em discussão a substituição do dólar por uma nova moeda global, a cargo do fundo. Os Estados Unidos eram supostamente contrários a uma nova unidade de troca internacional, mesmo porque ela manteria o dólar desvalorizado – num cenário de alta inflação.
Diante desse quadro, ainda no governo do democrata Jimmy Carter, o presidente do Federal Reserve, Paul Volcker, como conta Conceição, “subiu violentamente a taxa de juros interna e declarou que o dólar manteria sua situação de padrão internacional e que a hegemonia da moeda americana iria ser restaurada.” A alta dos juros dos Estados Unidos lançou o país e o resto do mundo em uma recessão que durou três anos, mas que, por meio da sobrevalorização do dólar, permitiu ao Fed retomar “na prática o controle dos seus próprios bancos e do resto do sistema bancário privado internacional”, como afirma a economista.
O dólar valorizado e a abertura da economia estadunidense levaram, no governo do republicano Ronald Reagan, segundo Conceição, a uma completa reformulação de sua economia. Os consumidores poderiam adquirir produtos a baixos preços e a indústria pesada elevar a produtividade com a aquisição de maquinário importado. Os setores mais avançados puderam também se expandir para a Ásia, em especial para a China. O setor financeiro foi desregulado e sofreu forte concentração. E o Estado norte-americano fortaleceu o setor militar – não por acaso envolvendo-se nas sequentes guerras a partir de então.
Enquanto a literatura econômica tratava de colocar os pregos no caixão do século estadunidense, Conceição (em 1985!) defendia justamente o contrário: por meio do dólar forte, lastreado nos papéis do título da dívida norte-americana, os mais seguros do mundo, os Estados Unidos retomaram sua hegemonia global. Algo que permanece até hoje, apesar das contestações que vemos agora com a ascensão da China e sua tentativa de impor um novo padrão monetário internacional. Isso explica em parte, por exemplo, porque o Brasil tem taxas de juros tão altas: porque o país tem reservas cambiais (dólares) de US$ 380 bi que ficam alocados nos títulos estadunidenses.
Como esses títulos remuneram negativamente (isto é, os juros são inferiores à inflação), para compensar essa perda e atrair dólares, o Banco Central é obrigado a manter taxas mais elevadas de modo a atrair o dólar para custear a dívida interna. Ou seja, se há alguma maneira de diminuir os juros é diminuindo o poder do dólar, algo que Conceição anteviu há quase quarenta anos.
Danilo Thomaz é jornalista, roteirista e mestre em Ciência Política pela UFF.