LEONARDO WEXELL SEVERO
“Em um país semicolonial, como a Bolívia, há uma fronteira interna, que é invadida de forma invisível. A fronteira interna não é invadida por tropas estrangeiras, mas por meios mais poderosos e sutis: o endividamento financeiro, a dependência econômica, política e cultural, o controle do comércio exterior, o estrangulamento da indústria nacional, a submissão dos grandes jornais, a desnacionalização da Universidade, a ‘iniciativa privada’, a campanha interesseira contra a estabilização. Ao ocupar um país por esses recursos, ele perde sua soberania e não interessa mais ao imperialismo que mantenha suas fronteiras físicas se a soberania interna estiver em poder da economia estrangeira”.
“Hoje a luta é para expulsar das nossas fronteiras a neocolônia pró-imperialista que quer nos manter sob uma ficção de soberania”
A atualidade e exatidão do pensamento do general ecoa, assinalando que “nos países subdesenvolvidos há uma angustiante exigência dos povos de encontrar um instrumento que responda às necessidades do tempo e do espaço histórico que gere eficientemente a anulação da estagnação para iniciar um processo autossustentável de planejamento e execução do desenvolvimento econômico e social”. “Hoje a luta é para expulsar das fronteiras do país a neocolônia pró-imperialista que quer nos manter sob uma ficção de soberania, esperando a pilhagem de nossos recursos naturais”, enfatizou.
A oligarquia parasitária busca a todo custo jogar o problema, provocado pela sua submissão aos ditames de Washington, para bem debaixo do tapete, se negando a admitir a nua e crua realidade: “A pobreza global do país, saldo da dependência e da opressão, se reflete no estado das nossas moradias e na situação em que adormecem nossas cidades”.
“Comprovamos que a opressão externa deforma o ser nacional”, relatou Torres, entendendo que a revolução, “sem empecilhos nem evasivas, é o caminho para a conquista da independência de todos os povos que vivem no mundo cinzento do subdesenvolvimento”. Diante disso, esclareceu, é que “instituímos na Bolívia um governo revolucionário civil-militar para pôr fim a uma ordem não somente pseudodemocrática, mas também profundamente antinacional”.
Daí o significado de um processo de transformação com uma “ampla base humana constituída pela imensa maioria do povo” – fundamental para enfrentar a quinta coluna interna -, sem o qual o governo ficaria sem qualquer condição para barrar “a expansão e agressão econômica do imperialismo”.
Mas quem compunha, na avaliação do general Juan José Torres, essa casta que via a revolução como um inimigo mortal? “A oligarquia financeira, importadora, bancária e mineira”, que havia atingido a preponderância, e que “reduziu o exército à única função de guardião dos privilégios de uma minoria totalmente estranha ao povo”, que fez do imperialismo “o seu amo poderoso e somente lhe dá acesso às migalhas do banquete que espolia da economia nacional”.
Como não havia se formado na Bolívia “uma sólida burguesia nacional que possa dispor de meios econômicos suficientes para fazer os investimentos necessários à transformação de nossa economia”, defendia Torres, “os investimentos públicos têm um papel fundamental no desenvolvimento nacional”. Daí a razão de se empenhar em garantir linhas de crédito, de valorizar os salários, de impulsionar o fortalecimento do mercado interno.
O RESGATE DO NACIONALISMO REVOLUCIONÁRIO
O combate à tragédia social da Bolívia, que o Movimento Ao Socialismo (MAS) dos presidentes Evo Morales e Luis Arce Catacora tem transformado em relevantes feitos, é visível nos inúmeros programas sociais, na construção da infraestrutura, nos investimentos na industrialização e na postura altiva frente ao retrocesso privatista e de precarização de direitos.
No início dos anos 70, recordou o general, “nos deparamos com uma distribuição injusta de renda; dois em cada três bolivianos não sabem ler, a expectativa de vida nas minas é de 27 anos; há um médico para cada dez mil habitantes; de cada mil crianças que nascem, 92 não chegam ao primeiro ano de vida; a economia depende praticamente de uma única linha de exportação”. No conjunto da população, “a expectativa média de vida não superava a de 40 anos”. Para quem se interessar a compreender o nível da brutalidade da exploração, recomendo a leitura do conto Tempestade na cordilheira, de Walter Guevara Arze. Hoje, a expectativa de vida no país andino é de 72,5 anos.
Neste breve período que passamos por La Paz, Cochabamba, Sacaba, El Alto e Oruro, pudemos ver os constantes e virulentos ataques midiáticos ao governo do MAS, bastante semelhantes à bajulação das “pesquisas” divulgadas pela Folha de S. Paulo em favor das privatizações. “A propaganda se converte em um poderoso instrumento de distorção de valores”, esclarecia o general, frisando que são “agentes antinacionais” que “recorrem à calúnia e à confusão para semear a anarquia e a incerteza”.
O fato, assinalava JJ Torres, é que “aquela democracia, gerida como era, reduzia-se a uma simples fórmula inoperante e estéril, que só servia para manter os privilégios de uns poucos e manter o povo marginalizado do poder público”.
Numa rápida avaliação sobre o início das ações da sua presidência, resgatava “a construção da Fábrica de Cimento em Cochabamba, o avanço dos Fornos de Fundição de Minerais; o monopólio estatal sobre as fundições; a reposição salarial para os mineiros e a reversão de rejeitos [em recursos, pois antes eram desperdiçados], para citar algo que foi feito em 90 dias de governo, comprovam os acertos de nossa política econômica e social”. Confiante, anunciou a vitória do seu governo contra “os descrentes e derrotistas da nacionalização do Gulf Oil, propagandistas da invencibilidade dos monopólios internacionais, falsos profetas que abandonaram a meio caminho a reversão das estruturas petrolíferas ao Estado boliviano”.
O presidente vivia então um embate com integrantes da Assembleia Popular, a quem havia conferido poder – taxado pela campanha anticomunista da extrema-direita como o primeiro “soviete” da América do Sul – e que Torres instalara como poder consultivo ao lado do Palácio Presidencial. Fazendo o jogo do imperialismo, como é do seu feitio, setores trotskistas viam na indenização da Gulf Oil – medida tomada pelo governo de Alfredo Ovando Candía, que Torres havia integrado – uma vacilação e um retrocesso, passando a disparar contra o general. Agindo como esquerda infantil, estavam tremendamente equivocados, pois a ação nacionalista afetou diretamente os EUA, permitindo a Bolívia recuperar todas as reservas de petróleo e gás, além de possibilitar o acesso a empréstimos de instituições internacionais.
“O capital estrangeiro, com seus efeitos predatórios, nos impôs o jugo pesado e limitador de uma economia monoprodutora”
Na compreensão do presidente, era preciso romper com a camisa de força da dependência, expressa na redução do país a mero sobrevivente da exportação de matérias-primas. “Nosso país foi vítima de sistemas irracionais de exploração que deformaram nossa economia e impediram nosso progresso. Ao invés de aproveitar as enormes possibilidades oferecidas pela variedade de recursos naturais, o capital estrangeiro, com seus efeitos predatórios, nos impôs o jugo pesado e limitador de uma economia monoprodutora”, assinalava.
“REVOLUÇÃO É INDUSTRIALIZAÇÃO”
“A Revolução Nacional é a transformação dessas matérias-primas em produtos acabados. É converter minerais em metais, petróleo em derivados e hidrocarbonetos em petroquímicos; é o repovoamento da pecuária, é o reflorestamento da agricultura, irrigação e adubação dos campos; é a distribuição justa da terra e dos créditos à disposição dos agricultores”. No entendimento de JJ Torres, “o primeiro objetivo dos países subdesenvolvidos consiste em subtrair das mãos do imperialismo o controle das matérias-primas não-renováveis”. Uma vez tomada a decisão, “é fundamental, para a sobrevivência e consolidação do processo revolucionário, criar uma estrutura industrial que assegure o aproveitamento das nossas matérias-primas reduzindo os termos de troca atualmente desfavoráveisao país e atendendo ao máximo as necessidades de consumo do nosso povo”.
Sem titubear, reiterava: “de nada vale que uma nação seja dona de uma grande quantidade e variados recursos se não está, ao mesmo tempo, em condições de explorá-los e habilitá-los industrialmente e se vê na necessidade de recorrer a companhias estrangeiras para que os adquiram, os utilizem e promovam sua comercialização nos grandes centros de consumo”.
A fim de propiciar o acesso aos recursos e ampliar a independência, JJ Torres colocou entre as prioridades da sua política externa estreitar os vínculos com os países vizinhos, “buscando promover e acelerar a integração da América Latina e o estabelecimento de relações diplomáticas e comerciais com os países socialistas”. Passamos a considerar, expressou, “que as relações exteriores constituíam um mecanismo fundamental para afirmar a soberania e obter, de todas as partes do mundo, os recursos indispensáveis ao nosso desenvolvimento econômico”. Mas, sobretudo, “é preciso que saibamos que nenhum país dá nada, que o progresso se adquire e se paga, que a técnica não é presente dadivoso de ninguém senão artigo de consumo com preço, juros e prazos no mercado internacional”.
“PILHAGEM E DEVASTAÇÃO ESTRANGEIRA”
“Toda a nação pode contemplar o quadro de pilhagem, desperdício e devastação que a opressão estrangeira e a incapacidade e obscurantismo da direita reacionária nos deixaram”, denunciava o general, frisando que “tudo o que tenho a fazer é mostrar a eles os pulmões destruídos, as mãos calejadas e os pés descalços”. Sendo assim, “a tarefa do Governo Revolucionário pode ser resumida na restauração da dignidade humana e no retorno da confiança no futuro”, pois “Pátria não é conceito oco, nem geografia vazia, são os recursos, as fontes de trabalho, as oportunidades de riqueza e de progresso”.
Com este compromisso, convocou o povo boliviano a “avançar com valentia e decisão até alcançar a vitória, que nos fará mais donos de nós mesmos e do nosso destino”. “Como nos ensinou Bolívar, deixemos o medo para trás”, proclamava.