Pular para o conteúdo

MOVIMENTO EM DEFESA DA SOBERANIA NACIONAL

MOVIMENTO EM DEFESA
DA SOBERANIA NACIONAL

NOVO LOGO 2

FAÇA PARTE DA NOSSA LUTA EM SEU ESTADO. TORNE-SE MEMBRO E PARTICIPE.

FAÇA PARTE DA NOSSA LUTA EM SEU ESTADO. TORNE-SE MEMBRO E PARTICIPE.

Os franceses e o Brasil

    Por Angelo Oswaldo de Araújo Santos

    O Brasil sempre atraiu a atenção dos franceses. Os interesses econômicos recobriram-se do fascínio pela novidade do imenso território descoberto pelos portugueses no hemisfério sul, como demonstrou a famosa festa em que um grupo numeroso de tupinambás dançou, na cidade de Rouen, em 1550, em homenagem ao rei Henrique II e sua mulher, Catarina de Médicis. Em museu de Rouen (Musée Départemental des Antiquités), encontram-se toras de pau-brasil entalhadas e utilizadas na ornamentação de casas da época em que os franceses tudo arriscavam para buscar a madeira vermelha nas costas brasileiras.

    As experiências de implantação de uma colônia, com Nicolas Villegagnon (1510-1571) no Rio de Janeiro, entre 1555 e 1560, e Daniel de la Touche (1570-1631), em São Luís do Maranhão, no ano de 1612, deixaram forte impressão no imaginário, mas não lograram o êxito de Duguay-Trouin (1673-1736), que saqueou o Rio em 1711, onde se dava o embarque para Lisboa do ouro extraído nos sertões do Distrito das Minas, então integrante da Capitania de São Paulo. Façanha que levou o rei Dom João V a mandar queimar os exemplares de Cultura e Opulência do Brasil por suas Drogas e Minas, naquele ano publicado em Lisboa pelo jesuíta Antonil, já que continha a indicação do roteiro para se chegar às cobiçadas minas do Ouro Preto e do Sabarabuçu.

    Alguns anos mais tarde, as “pérfidas ideias” francesas, assim chamadas nos “Autos de Devassa” da Inconfidência Mineira, rechearam as livrarias dos letrados de Minas Gerais, como a do cônego Luís Vieira da Silva, tema de um espirituoso ensaio de Eduardo Frieiro, e contribuíram para a fermentação do plano revolucionário de 1789 em Vila Rica. Mas os poetas emergentes, distanciando-se da metrópole intelectual que era a França, foram pastorear na Arcádia Romana os versos que moldaram a obra de Cláudio Manuel da Costa e Tomás Antônio Gonzaga.

    O império napoleônico fez com que a família real portuguesa se transferisse para o Brasil, em 1808. Após a abertura dos portos pelo príncipe Dom João, muitos franceses passaram a viver no país ou percorreram de ponta a ponta o fabuloso território. A chamada Missão Francesa foi a reunião, no Rio de Janeiro, de um grupo de artistas procedentes da França, no qual Jean-Baptiste Debret (1768-1848) e Grandjean de Montigny (1776-1850) tiveram protagonismo notável.

    O naturalista Auguste Saint-Hilaire (1779-1853) visitou as províncias do Rio de Janeiro, Minas Gerais, São Paulo, Goiás, Espírito Santo, Santa Catarina e Rio Grande do Sul. Ao chegar ao Eremitério do Caraça, em 1817, nos ermos finais da região mineradora, Saint-Hilaire comoveu-se ao ser indagado pelo Irmão Lourenço, fundador da obra da Senhora Mãe dos Homens, sobre o que havia sido feito de Napoleão, exilado em Santa Helena. Na primeira viagem que fez ao centro de Minas Gerais, em 1881, chegando a Ouro Preto, Mariana, Sabará, Santa Luzia, Lagoa Santa e Caraça, o imperador Pedro II valeu-se da narrativa de Saint-Hilaire, atido à sua leitura para melhor observar a natureza e os diferentes aspectos da vida mineira.

    A influência francesa atravessa o Oitocentos e avança pelo século XX. Os escritores Anatole France (1844-1924) e Rémy de Gourmont (1858-1915) eram reverenciados. Anatole France visitou o Rio de Janeiro em 1909, sendo recebido pela Academia Brasileira de Letras e seu presidente, Rui Barbosa.  Solitário em Mariana, o poeta Alphonsus de Guimaraens (1870-1921) sonhava “oficiar no mosteiro de Verlaine”. O mecenas Freitas Vale (1870-1958) abriu em São Paulo, em 1904, as portas de sua Vila Kyrial e escrevia poemas simbolistas somente em francês, sob o pseudônimo de Jacques d’Avray.

    O boi no telhado

    Mas é com o compositor Darius Milhaud (1892-1974), secretário do poeta Paul Claudel (1868-1955), embaixador da França no Rio de Janeiro entre 1916-1919, que o Brasil exerce um impacto significativo na obra de um autor francês. Milhaud deixou-se contaminar pelos ritmos brasileiros, que animam suas composições, e admirava a obra de Ernesto Nazareth. “Le bœuf sur le toit” (“O boi no telhado”), inspirada numa canção do carnaval carioca de 1918, marcou época em Paris.

    Capital da República, o Rio de Janeiro festeja os cânones da belle-époque, com seus neologismos, de maneira que as primeiras manifestações modernas ficam nos interstícios do padrão oficial. Em São Paulo, convergência de gente de toda parte, o movimento modernista expande-se desde os primórdios da década de 1910. O pintor lituano Lasar Segall (1889-1957) expõe em 1913 e vai fixar-se na cidade, na qual Anita Malfatti (1889-1964) mostra um conjunto impactante de pinturas em 1917, merecendo a crítica feroz do escritor Monteiro Lobato.

    Entre os dias 11 e 17 de fevereiro de 1922, eclode a Semana de Arte Moderna, realizada no Teatro Municipal de São Paulo. Com repercussão em todo o Brasil, a Semana vem revelar a produção inovadora de músicos, poetas, atores e pintores. “O sapo”, um poema de Manuel Bandeira, faz a plateia coaxar a fim de vaiar a nova poesia. E a música de Heitor Villa-Lobos anuncia sonoridades inauditas.

    O poeta Oswald de Andrade e a pintora Tarsila Amaral estavam em Paris, nesse momento. Ao registrar os 30 anos da Semana, numa crônica de 29 de junho de 1952, Tarsila revela: “A verdade é que, por essa ocasião, como muitas vezes declarei, recebi em Paris uma carta de Anita Malfatti comunicando-me o ocorrido, quando eu trabalhava candidamente no atelier de Émile Renard, hors-concours do Salão oficial, o dos Artistas Franceses. Émile Renard, inteligente e sensível, respeitava Picasso e outros vanguardistas, razão pela qual via com bons olhos minhas academias de tendência impressionista que, naquele meio francamente acadêmico, pareciam avançadas demais. É que eu levara àquele ambiente as lições do professor Elpons, de São Paulo, cujo atelier frequentara pouco antes de minha partida para a Europa. De volta ao Brasil, em junho de 1922, só aqui vim tomar contato com a arte moderna, acontecendo-me o mesmo que aconteceu a Graça Aranha”.

    Tarsila e Oswald voltam a Paris, em 1923. Na Place de Clichy, em Montmartre, eles anteveem um novo Brasil nascendo de suas raízes originais. No estúdio da rua Hégésippe Moreau, Tarsila reúne a vanguarda artística de Paris e compartilha “feijoada, compota de bacuri, pinga e cigarros de palha” com Blaise Cendrars, Fernand Léger, Jules Supervielle, Brancusi, Robert Delaunay, Vollard, Rolf de Maré, Darius Milhaud e o príncipe negro Kojo Tovalou. E um outro grupo, em que aparecem Jean Cocteau, Erik Satie, Albert Gleizes e André Lothe, além de, eventualmente, Picasso, Jules Romains e Valéry Larbaud.

    Aproximando-se do poeta suíço-francês Cendrars, Tarsila e Oswald nele despertam a vontade de visitar o Brasil, o que veio a acontecer no início do ano de 1924. Sérgio Milliet, também em Paris, liga-se a Cendrars. Numa crônica de 19 de outubro de 1938, Tarsila evoca essa época: “Os artistas tateavam o novo caminho aberto pelo cubismo e, por toda parte, nos cafés, nos restaurantes, nos corredores dos teatros, nos intervalos dos concertos, na rua, em casa se falava sobre arte, entre críticas e divergências que se entrechocavam implacáveis. Cendrars, um dos pioneiros da nova poesia livre, ágil como o pensamento, forte, sadia, gostosa como um fruto selvagem, era atacado pelos surrealistas. Mas Cendrars não dava confiança”.

    Blaise Cendrars (1887-1961) era um “bourlingueur”, atraído pelas viagens aventurosas. Em 1915, em Châlons-sur-Marne, ferido gravemente no decorrer da 1ª Guerra Mundial, ele tem amputado o antebraço direito: Blaise “sans bras”, como no sonho premonitório da pintora Sonia Delaunay, em que o poeta aparece sem um braço. Condecorado, torna-se cidadão francês em 16 de fevereiro de 1916. Mas logo Blaise Cendrars vai virar “Braise, Brésil: Brésil cendré”, na saudação entusiástica dos modernistas de São Paulo.

    Em fins de 1923, Oswald e Tarsila levam Cendrars ao encontro de Paulo Prado, no hotel Claridge, nos Champs-Élysées. O mecenas paulista convida o poeta a visitar o Brasil. Iria concretizar-se a proposta que os modernistas lhe haviam feito. Em breve escala no Rio de Janeiro, é recebido por Paulo da Silveira, Américo Facó, Ronald de Carvalho, Sérgio Buarque de Hollanda, Graça Aranha, Prudente de Morais, Neto e Guilherme de Almeida, conforme registrado em fotografia. Desembarcado do navio “Formose” em Santos, em 5 de fevereiro de 1924, um incidente marca a esperada chegada. Os fiscais alfandegários querem impedir sua entrada no Brasil, alegando ser ele um mutilado. Mário de Andrade, indignado, publica um artigo contundente, afirmando ser a mão perdida de Cendrars aquela de que mais necessita o Brasil na construção da sua nova cultura. Sérgio Milliet, Couto de Barros, Luiz Aranha e Rubens Borba de Moraes o conduzem a São Paulo, onde é homenageado com um jantar por Dona Olívia Guedes Penteado, no seu célebre salão modernista, e faz palestra sobre a moderna poesia francesa.

    “Nulle part au monde je ne fus aussi frappé par la grandeur manifeste d’aujourd’hui et par la beauté immuable de l’activité humaine qu’en débarquant pour la première fois au Brésil” (“Em nenhum lugar no mundo eu fui impactado pela grandeza manifesta de hoje e pela beleza imutável da atividade humana como ao desembarcar pela primeira vez no Brasil”), escreve ele no livro Aujourd’hui (1931), em texto recolhido por sua filha Miriam Cendrars, no volume de 600 páginas que ela dedicou à vida “d’un homme qui a cherché la lumière” (“de um homem que buscou a luz”). Visitei-a no seu apartamento em Paris, quando Miriam Cendrars assim escreveu no exemplar a mim ofertado: “Pour Angelo Oswaldo, ce ‘Blaise Cendrars’ qui appartient aussi au Brésil” (“Para Angelo Oswaldo, este ‘Blaise Cendrars’ que pertence também ao Brasil”). Foi em 1º de dezembro de 1984.  

    Caravana paulista ao encontro de Aleijadinho 

    A curiosidade de Cendrars provoca nos modernistas o desejo de mostrar-lhe o país, o que resulta no redescobrimento deles próprios como brasileiros. Entre os dias 1º e 4 de março, o poeta passa o Carnaval no Rio de Janeiro, com Olívia Penteado, Tarsila e Oswald. Em 18 de março, o Correio da Manhã, do Rio, estampa o “Manifesto Pau Brasil”, de Oswald de Andrade, no qual ele cita Cendrars.

    Em abril, a ideia é ampliar e aprofundar a “redescoberta do Brasil”, sugerida pelo mergulho no Carnaval carioca. A Semana Santa lembra os altares barrocos de Minas e incentiva o roteiro. Em companhia de Oswald e seu filho Noné, Tarsila, Olívia, René Thiollier, Gofredo Silva Telles e Mário de Andrade, Cendrars viaja por Minas Gerais, assistindo às cerimônias da Semana Santa nas velhas cidades do ouro. O contato com as cidades históricas e a obra do Aleijadinho causa forte impacto no grupo excursionista. Mário de Andrade, quando foi a Mariana, em 1919, para estar com o simbolista Alphonsus de Guimaraens, já havia sido tocado pela genialidade do Aleijadinho, segundo ele o primeiro artista genuinamente brasileiro. Ao retornar a São Paulo, Mário não mais focaliza Alphonsus, mas escreve e faz palestra sobre a singularidade do Aleijadinho na história da arte. Para ele, a fealdade de algumas esculturas de Congonhas do Campo, tão criticada pelo poeta e cronista João do Rio, nada mais é que o corte expressionista do mestre dos Passos da Paixão.

    A janela do trem, fazendo as vezes de câmera, sugere a Oswald a poesia kodak, clicando versos como Blaise Cendrars faz exatamente nos poemas reunidos no seu livro intitulado “Kodak”. A caminho de Minas, Oswald fotografa:

    Coqueiros
    Aos dois
    Aos três
    Aos grupos
    Altos
    Baixos

    Tarsila descobre, com encantamento, as cores brasileiras que ficaram esquecidas na paleta de sua infância. Oswald replanta o pau-brasil. O Aleijadinho foi o grande deglutidor da arte europeia. Como os indígenas Caetés que devoraram o primeiro bispo, dom Pero Fernandes Sardinha, em 1556, o poeta antropofágico devora todas as influências estrangeiras para fazer a digestão com que Antônio Francisco Lisboa, filho de um europeu e de uma africana, logrou energia para criar a primeira arte a ser chamada de brasileira.

    Ao contemplar Ouro Preto, em 1892, refugiado do arbítrio do marechal Floriano Peixoto, Olavo Bilac escreve um soneto parnasiano:

    O ângelus plange ao longe em doloroso dobre.
    O último ouro do sol morre na cerração.
    E austero, amortalhando a urbe gloriosa e pobre,
    O crepúsculo cai como uma extrema-unção.

    Passados 32 anos, Ouro Preto não mudou, mas a poesia expressa a grande mudança provocada pelo modernismo. Oswald assiste às procissões da Semana Santa:

    A matraca alegre
    Debaixo do céu de comemoração
    Diz que a Tragédia passou longe
    O Brasil é onde o sangue corre
    E o ouro se encaixa
    No coração da muralha negra
    Recortada
    Laminada
    Verde

    Tarsila não será apenas a aluna aplicada de Léger, tampouco Oswald o discípulo irônico de Apollinaire. A força criativa que moveu o Aleijadinho no sentido da originalidade é a seiva que alimenta Tarsila no parto do Abaporu e leva Oswald a proclamar o “Manifesto Antropófago” de 1928. As formas novas trazidas da Europa devem prestar-se a exprimir ideias não importadas, porém essencialmente brasileiras. Não mais os navios para o Havre, diz Cendrars, mas os trens que levam a Minas. Oswald chama para o embarque:

    Ide a São João del Rei
    De trem
    Como os paulistas foram
    A pé de ferro      

    Autoridades mineiras se espantam com o fato de intelectuais de São Paulo quererem conhecer as cidades do passado, quando Minas tudo faz para antecipar o futuro. Diretor da Imprensa Oficial, Noraldino Lima (1885-1951) recepciona os visitantes e procura enfatizar-lhes os progressos de Belo Horizonte como um modelo de cidade. Em entrevista ao Diário de Minas, Oswald diz que é nas velhas cidades que se acham as raízes do Brasil. E critica “os versalhes de estuque” da jovem capital de apenas 26 anos.
    Em Lagoa Santa, acompanhando os visitantes em nome do governo, o secretário de Estado de Agricultura, Daniel de Carvalho (1887-1966), oferece-lhes terrenos na região, o que excita os planos de Cendrars. O poeta imaginara envolver-se em negócio de terras no Brasil, a fim de sair das dificuldades financeiras em que se enredava, na França, com a família. Sempre visionário, ele queria fazer um filme e estudar possibilidades de ganhar dinheiro, com o apoio de Paulo Prado. Mas a proposta teria sido apenas um gesto do secretário, cuja aparência impressiona Mário de Andrade. No “Noturno de Belo Horizonte”, belo e caudaloso poema publicado em 1925, síntese das imagens e impressões da viagem a Minas, o autor de Pauliceia Desvairada visualiza-o:
    Afinal Belo Horizonte não é uma tolice como as outras.
    São Paulo não é a única cidade arlequinal.
    E há vida há gente, nosso povo tostado.
    O secretário de Agricultura é novo!

    No entanto, Blaise Cendrars guardará para sempre o sonho de tornar-se um latifundiário no Brasil. Em carta a dona Olívia Guedes Penteado, datada de fevereiro de 1929, ele pergunta: “que deviennent nos terres et nos souvenirs? Saudades, saudades, saudades! O Nostra Signora do Brazil, je vous bénirais si vous pouviez m’envoyer des belles photos d’Aleijadinho…” (“que aconteceu de nossas terras e de nossas lembrança? Saudades, saudades, saudades! Oh, Nostra Signora do Brasil, eu a abençoaria se a senhora pudesse me enviar belas fotos de Aleijadinho…”) .
    Para todos eles, o contato com a obra do Aleijadinho, em Congonhas, Ouro Preto e Sabará, traz consequência intensa e profunda. Cendrars identifica-se com o artista estropiado, quer fazer um filme sobre ele, apaixona-se pelas histórias que correm a respeito do grande escultor e arquiteto do Brasil colonial. Imagina uma personagem chamada “Manolo Seca”, na qual vai misturar traços de um prisioneiro com quem conversa nas grades da cadeia da cidade de Tiradentes e de um outro detento, Febrônio Índio do Brasil, a quem chegará a visitar no Rio de Janeiro. Na crônica de 1938, Tarsila lembra que, para Cendrars, “a realidade só o interessa como ponto de partida para as suas narrativas. As suas impressões locais são transplantadas para o quadro que a imaginação requer” – arremata, recordando-se do episódio em Tiradentes e da visita à penitenciária do Rio de Janeiro.
    O Aleijadinho torna-se matriz, fonte, referência, exemplo para os devaneios de Cendrars, como para a nova percepção dos modernistas a respeito da cultura brasileira. De volta a São Paulo após a estada em Minas, Cendrars envia correspondência, em 17 de maio, a um escritor mineiro (não identificado na carta, publicada por Miriam Cendrars na biografia dedicada a seu pai e pertencente ao Arquivo da Biblioteca Nacional da Suíça), a fim de solicitar-lhe informações: “Je viens de faire un voyage de trois semaines dans les vieilles cités de Minas. J’ai visité Congonhas et suis tout à fait enthousiasmé par l’oeuvre et les travaux d’Antonio Francisco Lisboa, dit l’Aleijadinho. J’ai decidé de faire connaître ce grand artiste en Europe et tout particulièrement en France, par une série d’articles dans les journaux et les revues d’art et je veux même lui consacrer um livre” (“Acabo de fazer uma viagem de três semanas nas velhas cidades de Minas. Visitei Congonhas e estou totalmente entusiasmado pela obra e os trabalhos de Antonio Francisco Lisboa, chamado de Aleijadinho. Eu decidi tornar conhecido esse grande artista na Europa e muito particularmente na França, por uma série de artigos nos jornais e revistas de arte, e quero até mesmo lhe dedicar um livro”). Junto ao santuário do Senhor Bom Jesus de Matosinhos de Congonhas do Campo, desde 1985 patrimônio cultural da humanidade pela Unesco, escreve Oswald, em 1924:
    As cúpulas brancas dos Passos
    E os cocares revirados das palmeiras
    São degraus da arte de meu país
    Onde ninguém mais subiu

    Um punhado de jovens poetas 

    Em Belo Horizonte, o grupo paulista e Cendrars encontram-se no Grande Hotel, na Rua da Bahia, com o punhado de jovens mineiros que se iniciavam nas trincheiras do modernismo. Carlos Drummond de Andrade (1902-1987), Pedro Nava (1903-1984), Emílio Moura, Martins de Almeida e João Alphonsus são alguns dos moços que, entre a timidez e o fascínio, se aproximam dos protagonistas da revolução deflagrada dois anos antes, na Semana de Arte Moderna. É o chamado Grupo da Rua da Bahia, frequentador do Café Estrela e da Livraria Francisco Alves, em preparativos para lançar, em 1925, os três números de A Revista, casamata do modernismo de Belo Horizonte, sob a liderança do poeta itabirano.

    Pedro Nava conta que “uma das coisas mais importantes para a vida do nosso grupo foi a visita, logo depois da Semana Santa de 1924, da caravana paulista que andava descobrindo o Brasil depois do Carnaval passado no Rio de Janeiro”. “Tive notícias do grupo na Rua da Bahia, por Carlos Drummond que estava convocando visitantes para irem ver os paulistas no Grande Hotel”.

    – De repente vimos entrar com passo apressado e ágil, vindo do corredor que dava para a ala de quartos dos altos de Paraopeba, a figura escanhoada, arrumada e escarolada de um Imperador Romano de olhos verdes. Era Oswald de Andrade sofregamente perguntando – quais são Vocês?”. E lembra ainda o memorialista: “O Oswald cintilava conversando. Nós ouvíamos tomados da maior admiração. Admiração por ele, por nós mesmos, de estarmos nos entretendo ali com a maior expressão do Modernismo”. Adiante, Nava retorna ao salão de cima do Grande Hotel “para encontrar a coisa mais linda, senhores! que estava lá: Tarsilalá do Amaralalá. Vocês já imaginaram? O trem divino e inteligente como ela era, aos trinta e quatro anos. Exatamente aquela cara do auto-retrato de frente, de frente simétrica direita igual à esquerda para mostrar que aqueles olhos prodigiosos eram mesmo dois, as narinas duas, as conchas das orelhas par, as metades da boca decalques”. E a primeira visão de Mário de Andrade: “Senti de estalo a imensa simpatia, a amizade em estado nascente e a enorme influência de sua personalidade sobre o raro que eu escreveria em moço e o demais que venho fazendo depois que passei da idade”.

    A respeito de Cendrars, “figura admirável de homem livre, aventureiro e poeta”, Nava afirma que sem dizer o seu nome não se pode escrever a história dos vanguardistas franceses e dos modernistas brasileiros. E desenha um retrato: “Tinha trinta e quatro anos, uma guerra e uma mutilação quando o conheci em 1924. Fisicamente era magro, seco, musculoso, ágil, cara triangular, pele do rosto lustrosa como se tivesse sido envernizada, muito vermelho, e de expressão sempre sorridente. Cabelos dum castanho avermelhado e olhos gateados. Conversando, o que dizia era sempre de originalidade saborosa. Seu julgamento era profundamente rápido e arguto. Não se enganava de jeito nenhum em questões de arte, poesia e literatura”.

    “Esse 1924 seria como um píncaro galgado e um ano simbólico para nós” – reconhece Pedro Nava. “Simbólico já na morte de Anatole France. Depois seria o ano de Kodak e Feuilles de Route (I. Le Formose), de Blaise Cendrars; dos Poemetos de Ternura e Melancolia de Ribeiro Couto; dos Estudos Brasileiros de Ronald de Carvalho que tínhamos no altar desde os Epigramas, de 1922”. 

    Ao Oswaldo, inteligência fina e penetrante, oferece o Oswald, por meu intermédio. Carlos”. Com esta dedicatória, datada de agosto de 1924, portanto três meses após o encontro na Rua da Bahia, Drummond leva em mãos a José Oswaldo de Araújo (1887-1975), diretor do Diário de Minas, um exemplar de Memórias Sentimentais de João Miramar, o que prova a imediata sintonia e cumplicidade dos modernistas paulistas e mineiros, a partir de abril de 24. Drummond conhecera Oswald um ano antes, mas é o contato com Mário que vai fazer desabrochar o modernista mineiro. Em carta datada de 28 de outubro de 1924, Carlos Drummond se dirige a Mário de Andrade, na expectativa de ser lembrado pelo criador de Macunaíma para entabular o diálogo:

    “Procure-me nas suas memórias de Belo Horizonte: um rapaz magro, que esteve consigo no Grande Hotel, e que muito o estima. Ora, eu desejo prolongar aquela fugitiva hora de convívio com o seu claro espírito”.   

    Desenvolve-se, desde então, a intensa correspondência entre os dois poetas. Na mesma ocasião, Cendrars continuará a incentivar os modernistas brasileiros.

    Aux jeunes gens de Catacazes
    Tango vient de tanguer
    Et jazz vient de jaser
    Qui importe l’étymologie
    Si ce petit klaxon m’amuse

    Datado de “Rio – 9-11-927”, o poema de Blaise Cendrars especialmente dedicado aos jovens poetas da revista Verde, da cidade mineira de Cataguases, evidencia a consideração em que tinha o movimento modernista em expansão no Brasil. O poema aparece no número 3 da Verde, lançado exatamente em novembro de 1927, e enche de orgulho os “ases de Cataguases”. Ainda em 1927, em Itanhandu, no Sul de Minas, aparece a revista Electrica, cujo nome expressa a busca das coisas novas. E Montanha é publicada em Ubá, na Zona da Mata.

    Verde implode fatalmente em 1929, com a morte do jovem Ascânio Lopes Quatorzevoltas (1906-1929), uma das grandes promessas do grupo, “o mais forte desse pessoal”, segundo Mário de Andrade. Levado pela “dama branca” dos românticos, o surpreendente poeta não teve a sorte dos modernistas Manuel Bandeira, Afonso Arinos de Melo Franco e Murilo Mendes, que venceram a tuberculose. 

    A Revista, editada por Carlos Drummond de Andrade, Martins de Almeida, Emílio Moura e Gregoriano Canedo, lança apenas três números, em julho e agosto de 1925 e janeiro de 1926. Apoiada por autores do Rio de Janeiro e de São Paulo, merece crítica reveladora da estreiteza do ambiente cultural de Belo Horizonte. O ensaísta Eduardo Frieiro, sob o pseudônimo de João Cotó, desmancha o prazer dos modernistas: “Há nesta cidade quatro ou cinco jovens estudantes que cultivam certo subproduto literário a que o Sr. Mário de Andrade dá o nome de ‘literatura pau-brasil’. Ditos rapazolas formaram aqui uma pequena tertúlia de iniciados no objetivo dinâmico do espírito moderno. Precisavam de um órgão. Veio o órgão, isto é, a Revista. A dizer a verdade, a insignificância do órgão não correspondeu à largueza da tarefa”.

    Se há um esforço de poetas e escritores no avanço das experiências modernistas, em sucessivas publicações de curta duração e livros de tiragem reduzida, permanece o vazio com relação às artes plásticas. Em 13 de maio de 1929, aparece o tabloide Leite criôlo, a seguir publicado como suplemento do jornal Estado de Minas, totalizando 19 edições. À frente do “criolismo” estão João Dornas Filho, Guilhermino César (originário do grupo Verde) e Achiles Vivacqua (em cuja casa situada na rua Bernardo Guimarães esquina de Sergipe os modernistas vivenciaram o “Salão Vivacqua” de poesia moderna). Segundo Dornas Filho, “a finalidade do criolismo é mais ou menos a mesma da antropofagia. É a mesma de todos os movimentos nacionalizadores”. Do que se faz, naquele trecho, em matéria de arte, ressaltam-se desenhos e aquarelas de Pedro Nava, que se torna médico e passa a ser considerado bissexto em poesia e em artes plásticas até à explosão de sua obra memorialística, em 1972, com o lançamento de Baú de Ossos.

    Um modernismo mineiro

    A exposição pioneira de Zina Aita (1900-1967), em 1920, no salão do Conselho Deliberativo de Belo Horizonte (em estilo manuelino satirizado por Mário de Andrade no poema de 1924), embora bem acolhida por Aníbal Mattos, não logra atrair o olhar da cidade dos ecletismos arquitetônicos. O diário oficial Minas Gerais, em 1º de fevereiro, dois anos antes da Semana paulista, comenta que “as cores ‘bizarras’ de suas telas ferem, não raro, a vista do visitante”. O poeta Austen Amaro (1901-1991), que publica o livro de poesia Juiz de Fora, em 1926, com desenho de Pedro Nava na capa, comparece à exposição e revela: “Foi a primeira vez que vimos obras em que as cores eram muito diferentes da realidade. (…) Umas pessoas riam, debochavam, outras procuravam entender as obras que estavam ali, bem perto de nós”. Natural de Belo Horizonte e tendo estudado na Itália, Zina Aita participa da Semana de 1922, que registra a presença do também mineiro Agenor Barbosa (1896-1976), poeta e jornalista nascido em Montes Claros, cujo poema “Os Pássaros de Aço”, lido no segundo dia (15 de fevereiro) do programa, foi o único aplaudido, certamente pelo ritmo ainda passadista dos versos.

    O modernismo nas artes somente emerge em Belo Horizonte cerca de vinte anos mais tarde, com a chegada do pintor Alberto da Veiga Guignard (1896-1962), em meio a iniciativas inovadoras do prefeito Juscelino Kubitschek. Em 1940, o prefeito convida Oscar Niemeyer, Cândido Portinari, Roberto Burle Marx e Alfredo Ceschiatti para a criação do conjunto da Pampulha, e patrocina, em 1944, a polêmica exposição de arte moderna na galeria do Edifício Mariana e a abertura da escola dirigida por Guignard no Parque Municipal. Oswald e Mário estiveram em Belo Horizonte, nessa época, e fizeram conferências sobre as duas décadas do movimento modernista de São Paulo, sempre exaltando a vertente mineira e, naquele instante preciso, o advento do modernismo visual em Belo Horizonte, com a Pampulha e Guignard.

    A contribuição dos escritores mineiros à produção modernista cresce após a excursão de 1924, é decisiva e será marcada pela comunhão com os autores de São Paulo e do Rio. O número três da Revista de Antropofagia (julho de 1928), dirigida por Antônio de Alcântara Machado, traz na primeira página o poema “No meio do caminho”, a pedra fundamental da poesia de Carlos Drummond de Andrade, tanto uma ara de louvação como um alvo de apedrejamento. A redescoberta do país e da condição de ser brasileiro, a busca das raízes e da originalidade, a apuração de um caráter nacional diferenciador, a linha evolutiva da arte que começa com o Aleijadinho, tudo isso faz com que os mineiros apreendam essas ideias e as pratiquem com a contundência que vai da poesia de Drummond ao memorialismo de Pedro Nava, princípio e desfecho da trajetória modernista.

    Um poema do escritor e político Afonso Arinos de Melo Franco (1905-1990) reflete, com nitidez, a nova visão com que os modernistas passam a enxergar a própria Minas:

    No ano de 1925 o Sr. diretor de obras
    Deitou abaixo a Matriz da Boa Viagem
    (que lindo nome para um cemitério)
    E construiu no lugar dela
    Uma catedral gótica, último modelo.
    Eu achei que foi bobagem,
    Mas o povo de Minas disse que era progresso.

    Ao analisar o “Noturno de Belo Horizonte”, o ensaísta Wander Melo Miranda diz que “o desenho de uma nação brasileira adquire aqui contornos que descartam a oposição excludente entre nacional e universal, cuja rigidez irá comprometer, até o limite do regionalismo ou do fascismo, parte do projeto modernista então em curso. Como Mário esclarece em 1924 a Drummond, a aludida oposição inexiste quando se pensa o ser nacional como portador de traços distintivos que são universais justamente por serem diferenciais, isto é, por contribuírem para incrementar a polifonia das civilizações – “o dia em que nós formos inteiramente brasileiros e só brasileiros a humanidade estará rica de mais uma raça, rica duma nova combinação de qualidades humanas. As raças são acordes musicais”. 
    Cerca de meio século depois da Semana de 1922, Oswald de Andrade ressurgiu no tropicalismo dos compositores Caetano Veloso e Gilberto Gil e no teatro de Zé Celso Martinez Correia, que montou O Rei da Vela, em 1968. Mário de Andrade passou a ser referência e impôs-se como quem anteviu novas perspectivas e dimensões para a cultura brasileira e seus desafios. E a venda do Abaporu para o Museu de Arte Latino-Americana de Buenos Aires, MALBA, em 1995, emblematizou a tela como ícone maior do modernismo, agitou os meios culturais e recolocou Tarsila Amaral na sua posição matricial da arte brasileira do século XX.
    Em particular quanto a Minas Gerais, o modernismo ajudou tanto os poetas e escritores a reencontrar suas origens quanto os intelectuais a pensar a formação cultural de sua região para além de limites asfixiantes que deterioraram outras vertentes do nacionalismo saídas do movimento de 1922. “Tenho duas mãos e o sentimento do mundo”, diz Carlos Drummond de Andrade. Ao lado de Pedro Nava, Drummond forma com o poeta Murilo Mendes (1901-1975) a trindade que Minas Gerais ofereceu ao modernismo brasileiro. Nascido em Juiz de Fora, Murilo Mendes viveu no Rio e no exterior, radicado em Roma, no final da vida, mas há todo um processo de leitura que conduz sua reinserção no conhecimento do público do Brasil como uma das maiores expressões advindas do primeiro modernismo.
    A poesia e a ensaística de Affonso Ávila (1928-2012) sintetizam a força criativa do legado modernista na obra das sucessivas gerações de Minas. A revalorização do Barroco Mineiro na condição de patrimônio cultural e fonte de criatividade começa na viagem modernista de 1924, uma jornada que não tem fim. Ouro Preto, Congonhas, Diamantina e Pampulha foram inscritos no patrimônio mundial, e esse acervo é fonte de novas rupturas e invenções tanto quanto a herança do modernismo, no centenário de sua explosão.

    Deixe um comentário

    O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *