De LINCOLN PENNA*
“O Brasil dos nossos dias não mais admite que se prolongue o doloroso processo de espoliação que, durante mais de quatro séculos, reduziu e condenou milhões de brasileiros a condições subalternas de existência”.
(Mensagem do presidente João Goulart ao Congresso Nacional).
La se vão 60 anos. É tempo para dar início a essas linhas de lembranças que me parecem oportunas nesse novo governo Lula, cujo DNA contém fortes componentes de natureza popular. Arrisco um paralelo com a presidência de João Goulart, guardadas, é claro, as devidas diferenças. E na aposta de que o atual governo nao terá o mesmo fim trágico de Jango, tendo em vista o golpe perpetrado pelas forças do atraso, da reação organizada política e institucionalmente e pelo velho algoz dos povos, o imperialismo, forças que impediram o curso de nossa história soberana.
Se tal exercício de memória pode vir a ser útil nesse momento, admito dúvidas, mas pessoalmente tenho certeza de que diz respeito a minha geração, nascida durante a vigência da Segunda Grande Guerra Mundial (1939-1945).
Da mesma forma que entra na cena política a questão das reformas por parte de um governo iniciado há apenas três meses, nada mais conveniente que evocar a política de reformas adotada pelo presidente João Goulart. Eleito pela segunda vez como vice-presidente da República pelo PTB, como fora anteriormente, em 1955 com JK.
Em setembro de 1961 o então vice-presidente João Goulart, Jango, tão logo foi empossado na presidência da República, após a renúncia de Jânio Quadros, deu início ao Programa de Reformas de Base. Apesar de ter tido a sua presidência reduzida pela Emenda que instituiu o sistema parlamentarista, adotado para limitar os poderes presidenciais, a disposição de Jango não foi arrefecida.
Entendeu que era preciso administrar esse aparente revés e pôs-se à luta para a retomada de suas prerrogativas presidenciais. Para tanto contou ao longo da vigência desse sistema com três primeiros-ministros, Tancredo Neves, Brochado da Rocha e Hermes Lima, que empreenderam a sua orientação voltada para a retomada do nacional-desenvolvimentismo com acentuado teor reformista. Cada qual com as suas características, e tendências partidárias, como o PSD, o PTB e o PSB, respectivamente. Todos, no entanto, leais a Jango.
Assim, durante o período de setembro de 1961 a janeiro de 1963, o governo parlamentarista do presidente João Goulart agiu em duas direções: abrir o debate para a implantação dos fundamentos das Reformas de Base assentadas nos pilares que dão suporte à soberania nacional e o trabalho diligente de pôr fim ao parlamentarismo de ocasião, cuja manobra só retardou as prerrogativas constitucionais.
Desse modo, quando através de um plebiscito Jango teve restaurado o sistema presidencialista, ele pôde assumir mais diretamente à condução do processo de seu programa de reformas anunciado previamente e que vinha sendo amadurecido já por ocasião do segundo governo Vargas, especialmente no fórum constituído pelo ISEB (Instituto Superior de Estudos Brasileiros).
Nesse período parlamentarista coube ao economista Celso Furtado elaborar uma proposta visando a contenção do processo inflacionário, que se encontrava acima dos 70% impossibilitando toda e qualquer política distributiva. Seu objetivo era o de alcançar uma taxa de crescimento de 7%, de modo a possibilitar uma política de distribuição de renda, só atingível mediante a retomada do desenvolvimento. O contraponto do que viria a ser o Plano Trienal era a adoção de um congelamento de salários e preços enquanto a economia se estabilizava, condição que contou de imediato com o repúdio sindical, até então base sólida com que contava Jango. Criticado pela direita e por parcelas da esquerda, o Plano foi deixado de lado.
Como ministro extraordinário do Planejamento, Furtado era uma das figuras confiáveis do presidente. Sua indiscutível competência, no entanto, esbarrou com o conflito de interesses imediatos manifestado pelos trabalhadores e assalariados de um modo geral. A imprensa alternativa que sustentava a linha política e programática do governo, como os jornais sindicais e os órgãos que reuniam jornalistas e intelectuais, como o Jornal de Debates, entre outros, reagiram com expectativa, no início, e depois com forte condenação ao Plano Trienal.
Iniciava-se com a restituição dos poderes presidenciais de governo o mais duro combate contra as forças reacionárias do país, sempre com apoio dos poderosos agentes externos das forças-tarefas do imperialismo. Jango jamais se acovardou, muito embora tivesse consciência da força dos inimigos internos e externos. Mesmo quando em visita aos EUA lhe mostraram a força bélica a serviço do combate ao comunismo e sua ameaça para o continente americano, ele não se sentiu intimidado.
Aproximou-se mais ainda de sua base sindical e operária, cuja mais forte demonstração foi a de ter como conselheiro o bravo e leal líder sindicalista Clodesmidt Riani, que juntamente com Hércules Correa, liderança comunista, articularam o grande Comício da Central do Brasil no dia 13 de março de 1964. Neste evento foi lido também o decreto de encampação de refinarias petrolíferas particulares, além de um discurso dos mais lúcidos e determinados, sem arroubos meramente apelativos. Jango mostrou-se decidido.
Antes, porém, todo o ano de 1963 foi grandemente ocupado para criar um ambiente que ao mesmo tempo mantivesse as forças populares mobilizadas tanto quanto possível, e por outro, intensificar as negociações para que as reformas fundamentais de seu programa não enfrentassem tantos obstáculos, como a Agrária, principalmente. Esta acabaria se restringindo a terras da União, às margens das rodovias nacionais sem, contudo, ferir os interesses do latifúndio.
Seria um começo, que acabaria não se concretizando em razão do golpe de 64.
A criação da CONTAG (Confederação Nacional dos Trabalhadores da Agricultura) e a formação do PUA (Pacto de Unidade e Ação), instrumentos que fortaleciam a base de apoio do governo Jango, traria novo alento diante das pressões que se faziam presentes no correr do mandato já com vistas às eleições do ano de 1965, que poderia alavancar a pauta reformista de maneira mais consequente.
Para que isso pudesse acontecer era necessária uma ampla frente popular que alcançasse o eleitorado menos politizado, numa época em que o analfabeto não tinha direito ao voto. Daí, a ampliação da experiência bem-sucedida de Paulo Freire no Nordeste tornando-a um Programa nacional.
Para isso, duas providências se impunham: um vasto programa de aumento do contingente eleitoral, que o PNA (Programa Nacional de Alfabetização) proporcionaria, e uma ação política mais decisiva no curso do programa das Reformas de Base, por sinal com alguma margem de aprovação por parte de parlamentares até da oposição, a despeito da correlação de forças ser em princípio desfavorável.
Na primeira das providências, a alfabetização, é possível dizer que houve êxito. Mesmo com seu início relativamente tardio, ainda assim fez seus bons resultados. Foi pouco tempo, uma vez que durou mais de seis meses ate a sua real execução, mesmo assim, transformou-se em um legado deixado pelo entusiástico governo de Jango.
*Doutor em História Social, conferencista honorário do Real Gabinete Português de Leitura, professor aposentado da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).