“Os mais pobres ficam sem água e sabe o que a empresa faz? Ela paga uma multa. Porque ela põe no Excel e vale mais a pena pagar a multa. Paga a multa porque ela tem um monte de advogados bons e empurra o negócio para frente, e não tem problema se a multa é mais barata do que levar água e garantir o abastecimento com água de qualidade”
O governo de São Paulo autorizou, no último dia 28, um estudo para embasar seu projeto de privatização da Companhia de Saneamento Básico do Estado de São Paulo (Sabesp) e da Empresa Metropolitana de Águas e Energia (Emae). A medida, defendida pelo governador Tarcísio de Freitas desde as eleições, tem provocado reações de diversos setores da sociedade.
O economista Eduardo Moreira foi um dos especialistas que criticou a intenção de privatizar o saneamento e afirmou que “privatizar empresas de água e esgoto é um escândalo total”.
“Vemos essa notícia, que não é surpresa, não é uma fórmula nova. Ou seja, estamos vendo todos os passos sendo percorridos pela Sabesp para ela ser vendida, provavelmente como as outras empresas, por um preço muito abaixo de quanto ela vale. Com isso, vai colocar São Paulo como refém para poder ter acesso ao seu bem mais básico, o bem sem o qual as pessoas não conseguem sobreviver”, disse Moreira, no programa diário do ICL Notícias, na plataforma YouTube.
O economista lembra que o discurso para a privatização é sempre o mesmo: o de afirmar a “falência” do Estado e pintar o setor privado como mais eficiente, mais moderno, com o argumento ‘privatiza que melhora’. “As empresas estatais podem ser melhoradas, claro, toda empresa pode ser melhorada. As empresas estatais devem ser modernizadas, as empresas estatais devem ganhar eficiência e as empresas estatais devem ter processos digitalizados. As empresas estatais devem ser menos burocráticas. Ninguém é contra isso. Senão, fica parecendo que você quer ou ter uma empresa que é ‘inchada’, que é ‘pesada’, que é não sei o quê ou, por outro lado, privatiza, vende para o fundo de investimento amigo pela metade do preço e aí depois que você sai do governo vai lá trabalhar como CEO desta empresa. Não são essas as duas opções”, alertou o economista.
“ESTATAIS SÃO EXEMPLO”
Moreira lembra que temos no mundo inteiro e, em especial no Brasil, empresas estatais que são sinônimo de eficiência e qualidade nos serviços prestados. “A Embraer, empresa do ramo aeroespacial, que é um dos maiores exemplos do mundo. A Petrobras usa mais tecnologia para explorar petróleo em águas ultraprofundas do que é preciso para pôr uma sonda na lua. A Embrapa tem tecnologia que revolucionou a agricultura no Brasil e faz com que a gente exporte esse conhecimento para o mundo inteiro”, continuou.
O economista alerta ainda que esse discurso quase sempre vem acompanhado de um processo de corte e redução de custos – e esse é o atual caso da Sabesp, uma vez que já circula notícia do enxugamento do quadro de funcionários com um Plano de Demissão Voluntária (PDV) para os próximos meses – de modo a tornar quase que inevitável a privatização. “Privatizam e, depois que privatizam, é um caos, quase sempre a empresa depois quebra”, afirmou.
“Saem cortando tudo que tem custo, para deixar a empresa quase que uma intermediária, uma corretora daquele bem. Ela vai comprar de alguém sem risco e vender para o outro sem risco, para poder ter a maior margem de lucro. Não tem que transformar nada na sociedade, não tem que prover nada para as pessoas mais pobres e, se der ruim, o Estado vai lá e acode, pois sabem que o serviço fundamental não se pode deixar quebrar”, disse Eduardo.
“Foi assim, por exemplo, com bancos no mundo inteiro. Foi assim na Califórnia, com as empresas de energia. Foi assim na Argentina, com os Correios. E aqui no Brasil temos vários casos de empresas em que isso também acontece. Vimos há pouco tempo atrás as empresas que foram privatizadas, deixando o estado inteiro sem luz e aí depois o Estado tem que comprar de volta”, completou.
REESTATIZAÇÕES
Moreira citou também notícias e estudos durante o período em que avançava a privatização da Companhia de Saneamento do Rio de Janeiro (Cedae), indicando que os esforços em todo o mundo seguiam na direção contrária, visando à reestatização do saneamento. Cidades como Paris, Berlim e outras 265 são exemplos desse movimento. “Agora, olha que curioso, em 2017 vários relatórios e reportagens davam conta do processo que estava acontecendo na Europa de reestatização de várias empresas do setor de energia, do setor de água, do setor de coleta de lixo. Empresas que tinham sido privatizadas e que fizeram o preço aumentar e a qualidade dos serviços diminuir brutalmente. França, Alemanha, Inglaterra, vários países começaram a reestatizar ou remunicipalizar, uma vez que vários serviços são prestados pelos municípios, lá na Europa”, lembrou.
Entre os recentes casos citados por Moreira está a recente reestatização do serviço de água na cidade de Setúbal, em Portugal, após 25 anos de privatização, que provocou a queda das tarifas em até 60%.
“Em todos os outros casos, o preço cai quando é do Estado. E por quê? Porque o mais rico pode subsidiar o mais pobre, o Estado tem essa capacidade de financiar taxas mais baixas para fazer obras de infraestrutura maiores. Então, o Estado tem essa capacidade de prover esse serviço com mais qualidade e com menor preço, claro, sempre melhorando, mas com condições de fazer isso”, disse.
No ponto oposto, após a privatização da Cedae no RJ, a qualidade dos serviços despencou, deixando o complexo da Maré por mais de um mês sem água, no fim do ano passado, além de terem disparado as reclamações no Procon do estado, com um aumento de 565% das ocorrências, devido a cobranças abusivas nas tarifas de água e esgoto.
“NÃO TEM ÉTICA, É LUCRO E PONTO”
“Os mais pobres ficam sem água e sabe o que a empresa faz? Ela paga uma multa. Porque ela põe no Excel e vale mais a pena pagar a multa. Paga a multa porque ela tem um monte de advogados bons e empurra o negócio para frente, e não tem problema se a multa é mais barata do que levar água e garantir o abastecimento com água de qualidade. É a teoria dos donos das Americanas, é a teoria da planilha de Excel, é o que faz dar maior lucro, isso é o que importa. Não interessa qual o efeito colateral. Não tem ética. Não tem limite moral. Não tem efeito colateral. É lucro e ponto”, disse o economista.
A tarifa social em São Paulo com a Sabesp é de R$ 23,42; no Rio de Janeiro, empresa privada, R$ 45,30; Campo Grande, empresa privada, R$ 56,55; Maceió, também empresa privada, R$ 53,20. Quando o assunto é a tarifa residencial, a diferença é ainda pior, com as empresas privadas cobrando quase o dobro do que cobra a Sabesp. Em São Paulo, a Sabesp cobra R$ 65,44; no Rio de Janeiro R$ 111,92; em Campo Grande, R$ 125,88 e em Maceió R$ 125,44. “O Einstein falava que a definição de insanidade é fazer a mesma coisa e esperar um resultado diferente. Você faz a mesma coisa, tem o mesmo resultado. Não tem mistério”, disse.
O economista alerta que, apesar de, por vezes, os serviços deixarem a desejar – o que nos faz ter de lutar para a melhoria dos serviços públicos, com qualidade para todos – é preciso brigar também para que seja público, porque ninguém pode ficar sem energia em casa, água é um direito.
“Estávamos comentando sobre o encontro do [Leonardo] Boff e do padre Júlio [Lancelotti] e falamos muito sobre a história do ‘pão nosso’. Pai Nosso que é esse que é o Deus, que nos faz irmãos, que torna o mundo uma grande comunidade, etc. Mas somos incapazes de dividir o nosso sustento, incapazes de olhar para quem está sofrendo e permitir que ele tenha o mínimo para poder sobreviver – hoje, no Brasil, 33 milhões de pessoas passam fome. O Guedes não acreditava que eram 33 milhões, então são quantos, Guedes, 25 milhões? São 20, são 15? Sabe o que são 15 milhões de pessoas, Paulo Guedes? É muita gente. Então, não existe a devoção a um Deus se não existe a compaixão com o irmão, com a irmã. O pão nosso é isso”.
“O pão nosso é sabermos dividir e oferecer o mínimo. E ontem o padre Júlio falava que o pão nosso talvez mais básico não é o pão, mas é a água. Porque o pão tem água também. Você não consegue fazer pão sem água. E ele falava que em São Paulo tem várias pessoas que vivem em situação de rua, que estão cada vez com menos acesso à água potável. Isso é um problema no Brasil inteiro, mas as populações pobres têm que ter garantido esse direito, tem que ser um direito universal. Quem nos dá água é a natureza, o homem não fabrica água”, concluiu.