Novas janelas se abrirão para o Brasil, caso a ex-presidente assuma a liderança do NBD. Sul global começa a projetar outra geopolítica financeira. Mas há entraves: estruturas burocratizadas e investimentos concentrados na China e Índia
As notícias de que a ex-Presidenta Dilma Rousseff poderá assumir a chefia do Novo Banco de Desenvolvimento (NBD) ainda neste ano de 2023 renovam as esperanças para que a instituição comece a finalmente efetivar as suas grandes potencialidades.
Anunciado em 2014, o NBD é um projeto dos BRICS que deriva de anseios por mudanças na arquitetura financeira global, a qual historicamente tem sido criticada por privilegiar os interesses particulares das potências ocidentais em detrimento das necessidades dos países pobres e em desenvolvimento.
Tendo sido fundado com um capital inicial autorizado de US$ 100 bilhões, sendo US$ 50 bilhões de capital subscrito e US$ 10 bilhões de capital já integralizado pelos países BRICS, o NBD se gabarita a ser, inclusive, um dos maiores bancos multilaterais do mundo. Isso tudo contando com uma estrutura de poder equânime e rotativa entre os países BRICS, sem ter sócio majoritário e sem estar subordinado aos mandos de qualquer uma das tradicionais potências do G7. Um Banco projetado para ter uma atuação mundial, a partir das demandas de financiamento dos países do chamado “Sul global”.
Em apertada síntese, o NBD pode ser tornar o exemplo de uma nova e necessária geração de bancos de desenvolvimento, ao passo que se constituiria como: (i) um banco do Sul e para o Sul (ou seja, dirigido por países em desenvolvimento e emergentes, voltado para atender às necessidades específicas dessas sociedades), (ii) um banco verde (isto é, que tem por função principal financiar projetos de infraestrutura e desenvolvimento sustentáveis) e (iii) um banco não-intervencionista (ou seja, com decisões operacionais baseadas no mérito e não em uma agenda política oculta, que desrespeita a soberania dos povos e nações).
No entanto, desde o início das suas operações, o Banco tem apresentado um desempenho muito abaixo das expectativas iniciais. Parte das dificuldades encontra certamente justificativa nas mudanças que ocorreram na conjuntura geopolítica desde a sua criação. No plano interno ao BRICS, podemos lembrar, por exemplo, das tensões entre Índia e China em relação às suas fronteiras e ao Paquistão, bem como das dificuldades na cooperação decorrentes das graves crises políticas domésticas em países como África do Sul e Brasil. No caso brasileiro, inclusive, desde o golpe parlamentar até o fim do governo de Bolsonaro, a política externa ficou vergonhosamente subordinada aos interesses de Washington, escanteando a agenda de cooperação Sul-Sul. No plano externo, podemos lembrar também do cerco internacional que vem sendo imposto contra a Rússia desde a anexação da Crimeia, agravado mais recentemente com o conflito na Ucrânia, bem como do acirramento da guerra comercial e das tensões militares entre os EUA e a China desde o governo Trump. Esses e outros fatores formaram um quadro internacional complexo e conflituoso para os BRICS, afetando a capacidade da plataforma de ajustar e coordenar politicamente seus projetos, como o NBD.
Além dos fatores geopolíticos, outra parte importante das dificuldades do NBD é resultado de problemas operacionais que não foram adequadamente abordados pelas presidências anteriores. Quando se compara, por exemplo, a performance do NBD com a do Banco Asiático de Investimentos em Infraestrutura (BAII) – uma contemporânea iniciativa multilateral liderada pela China – pode-se ter uma dimensão dos desafios que Dilma Rousseff poderá enfrentar nessa seara.
Ambas as instituições buscam, por exemplo, ampliar o número de países-membros para reduzir riscos financeiros, custos de financiamento e aumentar sua presença em mercados estratégicos. Somente em 2021, o NBD conseguiu firmar acordos para incorporar Bangladesh, Emirados Árabes Unidos, Uruguai e Egito como novos membros, mas os últimos dois ainda precisam finalizar os procedimentos internos para completar a adesão. Durante esse mesmo período, o BAII já havia aumentado sua base de membros de 57 para 105, tornando-se uma instituição global, apesar de ter sido inicialmente planejada para ser regional – o que é quase o oposto do que se esperava para o NBD.
Apesar de ter aprovado mais de 90 projetos nos últimos anos, o Banco dos BRICS tem tido dificuldade em liberar os recursos de forma consistente, frequentemente não atingindo nem mesmo as metas mais conservadoras previstas em sua Estratégia Geral (2017-2021). Por exemplo, no final de 2019, o NBD tinha cerca de US$ 15 bilhões em financiamentos aprovados, mas apenas havia liberado cerca de US$ 1,5 bilhão, ou seja, menos de 1/3 do esperado conforme a previsão oficial mais conservadora. Durante o mesmo período, inclusive, o BAII já tinha desembolsado quase o dobro de recursos liberados pelo NBD.
O ritmo de desembolsos somente começou a mudar por causa da pandemia, a qual motivou a criação de uma linha especial de financiamento (a “Fast Track COVID-19 Emergency Assistance Response Facility”), no valor de US$ 10 bilhões, de caráter emergencial e desburocratizada, para atender com rapidez demandas sanitárias e de assistência social requisitadas pelos países membros. Embora importante, o grande volume de desembolsos dos últimos anos foi excepcional, não expressando qualquer melhora substantiva nas dificuldades estruturais da instituição em financiar os projetos regulares de infraestrutura.
Além disso, o NBD não tem cumprido adequadamente com os deveres estatutários de diversificação e equilíbrio dos seus investimentos. Por exemplo, quase metade dos investimentos do Banco permanece concentrado em projetos na China e na Índia. Até o ano de 2018, o Brasil, inclusive, possuía nem 10% do portfólio do NBD – participação que subiu para pouco mais de 17% em 2022. Em verdade, o NBD tem tido pouca expressividade e é pouco conhecido no mercado nacional, apesar das demandas e das oportunidades existentes, revelando ainda mais a incapacidade e a ineficiência operativa do bolsonarista Marcos Troyjo à frente da instituição.
Do ponto de vista de práticas de inclusão e de direitos humanos, o NBD tem também muito o que melhorar. Em termos de diversidade de gênero, por exemplo, Dilma Rousseff será a primeira mulher a ocupar algum cargo na alta direção do banco. É ululante a necessidade de se mudar as práticas nessa área. Quanto à comunicação, transparência e participação social, o NBD tem dado maus exemplos. Não há inter-locução efetiva com setores da sociedade civil organizada, como movimentos sociais e setores da academia, que frequentemente reclamam da opacidade e dificuldade de diálogo com a instituição. Ainda, comparado aos serviços e dados que se podem facilmente acessar no site da BAII, o do NBD parece uma verdadeira “caixa-preta”. Por exemplo, enquanto o site do NBD mostra apenas dados muito genéricos sobre seus projetos, o do BAII dispõe detalhes específicos e documentos dos projetos financiados, tais como os Relatórios de Diligência Ambiental e Social, os Relatórios de Monitoramento da Implementação de Projetos, os Planos de Aquisição de Terras e Reassentamento, os Planos de Engajamento de Partes Interessadas etc.
Quanto aos direitos trabalhistas, é constrangedor que o NBD ainda não tenha estabelecido um mecanismo imparcial para resolver disputas entre o banco e os seus próprios funcionários. Isso porque, em virtude da imunidade jurisdicional concedida em seu tratado constitutivo, não é possível acionar tribunais nacionais para resolver conflitos dessa natureza. Trata-se de característica comum em instituições multilaterais e, justamente por isso, elas devem prever instrumentos imparciais de resolução de conflitos, permitindo que seus funcionários exerçam o direito fundamental de acesso à justiça. Para citar alguns exemplos, o Banco Mundial tem seu próprio tribunal administrativo, assim como o FMI. Outros, como a OMC e a ASEAN +3 Macroeconomic Research Office, reconheceram a jurisdição do Tribunal Administrativo da Organização Internacional do Trabalho para avaliar esse tipo de demanda.
Considerando que a BAII já estabeleceu seus próprios procedimentos e regras para permitir que seus funcionários exercitem o direito de recurso contra uma decisão do banco (ainda que o modelo do BAII não seja, nem de longe, uma boa referência), não se pode justificar a negligência do NBD com base em seu curto tempo de existência. Inclusive, a ausência de tal mecanismo é uma das razões pelas quais várias violações de direitos foram perpetradas contra o antigo Vice-Presidente brasileiro do NBD, Paulo Nogueira Batista Jr. Ele foi demitido ilegalmente de seu cargo por um procedimento interno que violou não apenas documentos legais do banco, mas também o direito internacional. Foi um claro caso de Lawfare, no qual a natureza intrinsecamente política e golpista do procedimento de demissão foi mal disfarçada como uma suposta violação ao código de ética do banco.
Portanto, não só há uma cultura democrática que precisa ser cultivada, valorizada e amplificada por novas gestões, como o NBD precisa corrigir a sua perfomance financeira. É necessário lideranças conscientes e compromissadas com mudanças para enfrentar desafios desta magnitude. Dilma Rousseff possui as capacidades para essa tarefa, compreendendo que a expectativa dos povos é que o NBD se torne um exemplo para uma dinâmica financeira global justa, inclusiva e equitativa, e não apenas mais um banco.