Economista amplia suas críticas ao Banco Central. Interlocutor do presidente e coordenador de uma comissão de estudos estratégicos no BNDES, ele prepara-se para organizar, no banco, um seminário que pode expor os limites da atual política econômica
por Antonio Martins
É duro debater ideias num país que tem propensão ao teledrama. A velha tendência da mídia brasileira ao intriguismo – a transformar em disputa pessoal o que são diferenças políticas – voltou a se manifestar no noticiário sobre a condução da economia. O presidente do BNDES, Aloízio Mercadante, viu-se obrigado ontem (13/2) a desmentir, em entrevista ao UOL, que cobice o ministério da Fazenda, ocupado por Fernando Haddad. Motivo: as especulações dos jornais sobre as iniciativas do economista André Lara Resende.
Co-formulador do Plano Real, André está entre os teóricos que se dedicam em todo o mundo, nos últimos anos, a um reexame crítico das teorias econômicas ortodoxas. Tornou-se interlocutor de Lula. Convidado a ser ministro do Planejamento, declinou. Mas coordena no BNDES, desde o início do governo, uma comissão de assuntos estratégicos. Prepara, para março, um seminário internacional que seguramente sugerirá caminhos para tirar o país da dinâmica de regressão produtiva e desigualdade, que o condena ao atraso. É para evitar o debate destas ideias que começa uma tentativa de indispor, com Haddad, Mercadante e Lara Resende.
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E quais são as visões deste economista singular? As mais conhecidas, nas últimas semanas, são as críticas à política de juros fixada pelo Banco Central (vale assistir a esta entrevista). Entre indignado e mordaz, Resende tem apontado paradoxos. A sociedade paga aos rentistas – no essencial, o 0,1% mais rico – juros reais de 8% ao ano (já descontada a inflação). A este ritmo, quem tem dinheiro para aplicar duplica o patrimônio a cada nove anos, sem tirar o corpo bronzeado da rede e sem correr risco algum. Quem se animará às agruras e incertezas de investir na produção, se tem essa alternativa espaçosa?
Mas as disfunções atingem também a democracia, lembra Resende. Para obter, no fim do ano passado, um aumento de minguados 2% do PIB no Orçamento de 2023, e pagar R$ 600 aos mais pobres, Lula foi obrigado a propor uma emenda à Constituição e uma negociação exaustiva e desgastante com o Congresso, sob tiroteio da mídia. Era a “PEC da gastança”, segundo a Folha. Mas para transferir o dobro deste valor aos rentistas, bastaram ao presidente do Banco Central “algumas canetadas” – e os jornais silenciaram. Como esperar que as maiorias defendam um sistema político que as desampara e as desconsidera de tal forma?
Vale lembrar: o fascismo não está morto; a porta para ele permanecerá aberta enquanto, em meio ao empobrecimento da população, as instituições forem percebidas como um teatro de truques.
Na busca de alternativas ao capitalismo financeirizado, Lara Resende vai muito além da oposição às taxas de juros – e é por isso que ele pode ajudar o governo Lula a enxergar horizontes aos quais parece desatento. Num artigo seminal publicado pelo Valor há um ano, o economista sustenta que a obsessão por “ajustes fiscais” como o perseguido pelo ministro Fernando Haddad é tola. A ideia de que os Estados podem gastar apenas o que arrecadam, ou têm capacidade limitada de se endividar foi massacrada pelos fatos, na crise econômica de 2008. Os bancos centrais emitiram, a partir do nada, montanhas de dinheiro para salvar o sistema financeiro. Ao contrário do que previa a teoria quantitativa da moeda, a inflação permaneceu sob controle. Se foi assim, por que um governo democrático não poderia fazer o mesmo para sanar as lacunas do SUS, reconstruir a escola pública, universalizar o saneamento, abrir redes de metrô nas metrópoles, lançar a transição para energias limpas e gerar milhões de ocupações de todos os níveis, necessárias para executar estas tarefas?
Porque criou-se, continua Lara Resende em outro texto, uma “camisa de força ideológica”, uma servidão a velhas concepções que custa muito a ser rompida — inclusive entre governantes progressistas e ilustrados. É árduo mostrar que “aquilo que todo mundo sabe” pode ser submetido à crítica dos fatos e da lógica. Ele, porém, insiste.
Os primeiros nomes que reuniu na comissão de estudos estratégicos do BNDES têm também ideias largas e casca grossa contra as pedradas da ignorância. A procuradora Élida Graziane é uma das maiores estudiosas brasileiras do financiamento de políticas públicas. Participa de diversas ações, no STF, contra o “teto de gastos”. O médico sanitarista José Gomes Temporão foi (no governo Lula) um ministro da Saúde notório pelo dinamismo e inovação a favor do SUS. É partidário de um projeto de reindustrialização em sintonia com as transformações produtivas e sociais do século XXI.
O Brasil, segundo tal concepção, deve refazer sua indústria partindo das necessidades sociais mais prementes: Transportes, Saneamento, Urbanização, Saúde. Uma indústria de medicamentos e material hospitalar e médico, por exemplo, prosperará com certeza, se bem gerida – porque terá as encomendas do maior sistema público de Saúde do mundo. Também compõem o grupo o economista Antonio Correia de Lacerda, que presidiu o Conselho Federal de Economia, o ex-ministro da Educação Luís Cláudio Costa e dois funcionários de carreira do BNDES: José Roberto Afonso e Lavínia Barros de Castro.
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O seminário de março, cujo tema são as novas ideias sobre política monetária e fiscal, pode lufar os ares do debate econômico brasileiro, tão carregado de ideias anacrônicas e interesses minoritários. A programação ainda está sendo construída. Os dois primeiros nomes revelados por Resende causarão, se confirmados, calafrios entre os que julgam impossível reconstruir o país em novas bases – em especial, os rentistas e seus porta-vozes.
O economista norte-americano Jeffrey Sachs tornou-se, nos últimos anos, um crítico ácido da desigualdade global e da disfuncionalidade das economias movidas pela lógica rentista. Propõe forte aumento do investimento público para assegurar serviços públicos de qualidade – sem o que não se combaterá o apartheid global. Sua colega italiana Mariana Mazzucato é ainda mais incisiva na crítica ao rentismo e na afirmação do papel econômico do Estado. Defende a ideia de uma economia articulada em torno de missões: objetivos comuns norteadores da ação produtiva, definidos não pela busca do lucro mas pela reflexão coletiva sobre os problemas sociais e como enfrentá-los.
Num sinal de esforço descolonizador, o seminário deverá reunir também economistas chineses e indianos. Os ministros Fernando Haddad e Simone Tebet serão convidados. Oxalá compareçam abertos ao diálogo.