Ao contrário de Lula, que propõe a reconstrução nacional, ministro empenha-se num “ajuste fiscal”. História revela: além de não resolver a dívida, ele corrói o apoio popular aos governos, desencanta as sociedades e abre caminho para o fascismo
OUTRASPALAVRAS
Por Antonio Martins
O ministro Fernando Haddad, que volta hoje ao Brasil depois de estar em Davos e na Argentina, elegeu como primeira prioridade de sua gestão um “ajuste fiscal”. Por meio medidas que visam aumento de arrecadação e corte de gastos, ele pretende reduzir o déficit primário da União, hoje em 2,16% do PIB – transformando-o se possível num superávit. O pagamento de juros não entra na conta e não será afetado. Visto pelos grandes especuladores financeiros como um passo no sentido correto, o movimento é responsável por ações impopulares. O aumento do salário mínimo para R$ 1.320 foi ao menos suspenso; a correção das alíquotas de Imposto de Renda, que beneficiaria grande parte dos assalariados, também. Como o “ajuste fiscal” jamais esteve no programa de Lula, e não está em sintonia com o projeto de reconstrução nacional do presidente, Haddad faria bem em estar atento a outras opiniões.
Uma delas acaba de ser expressa pela economista indiana Jayathi Gosh, professora na Universidade de Massachussets, nos EUA. Ela co-coordena a Comissão Independente para a Reforma da Tributação Internacional sobre as Corporações (Icrict, na sigla em inglês), da qual participam, entre outros, Thomas Piketty e o Nobel de Economia Joseph Stiglitz. O grupo busca saídas redistributivas para a crise prolongada que faz as economias ocidentais patinarem desde 2008. Entre elas, não estão os “ajustes fiscais”. Um artigo publicado por Gosh na última sexta-feira explica por quê.
A economista evoca um evento histórico: as políticas de “ajuste” dos anos 1920 e 30 e sua relação com o advento do fascismo. O ponto de partida é Keynes. À época, lembra Gosh, ele advertiu que as medidas de corte de despesas – apresentadas desde então como necessárias a restaurar a “confiança dos investidores” – seriam ao mesmo tempo “fúteis e desastrosas”. Elas ofenderiam a ética da justiça social, ao obrigarem os servidores públicos e os desempregados a pagarem pela crise, em nome de “orçamentos equilibrados”. E, ao desapontar as maiorias trabalhadoras, levariam-nas a perder confiança em seus líderes, abrindo espaço para os que exploravam o ressentimento e propunham a violência. Gosh frisa que o vaticínio concretizou-se logo depois. A causa econômica da ascensão de Adolf Hitler, em 1933, não foi a hiperinflação da República de Weimar, ao contrário do que o senso comum acredita. Esta havia terminado dez anos antes (durou de 1921 a 23). O nazismo alavancou-se, na verdade, em medidas de corte de gastos que produziram deflação e afundaram milhões de trabalhadores no desemprego e na pobreza.
A economista indiana sustenta que há exemplos históricos de alternativas bem-sucedidas – inclusive no Ocidente. Em 1951, seis anos após a derrota da Alemanha na II Guerra, seus credores ofereceram ao país um grande pacote de alívio da dívida, visto hoje como uma das causas do período de prosperidade e estabilidade conhecido como os “trinta anos gloriosos”.
Gosh contrasta esta época com a brutalidade contemporânea da aristocracia financeira, que voltou a capturar a riqueza coletiva por meio de juros e está fazendo ressurgir a ameaça do fascismo.
O alerta de Gosh merece ser lido com atenção especial no Brasil. Em pouco mais de três semanas de governo, Lula foi capaz de produzir um conjunto notável de fatos simbólicos – a subida inusitada à rampa do Planalto, a demissão do comandante golpista do Exército, o relançamento da ideia de integração latinoamericana (incluindo as recepções populares e o show memorável em Buenos Aires), o passeio no Fusca de Mujica.
Estes gestos acalentam a esquerda e ajudam a coesionar uma base de apoio ativista – mas ainda falam muito pouco às maiorias. Não custa esquecer que o bolsonarismo teve quase 50% dos votos, e que continuará explorando a miséria e o desencanto. As calçadas continuam coalhadas de famílias em desamparo. A diretoria da Petrobras, remanescente da era Bolsonaro, impôs na sexta-feira (sem que houvesse reação no governo) um novo reajuste sobre os combustíveis.
Expressas por Lula com ênfase, nos discursos de posse, as ideias de reconstrução nacional em novas bases e de luta contra a desigualdade são muito mobilizadoras. Mas, para que se convertam em realidade, precisam da ação dos ministérios econômicos. O “ajuste fiscal” é, para usar uma metáfora futebolística, um gol contra.