Petrobrás S.A. é uma sociedade de economia mista. Nasceu sob o controle estatal e assim se mantém, apesar das inúmeras mudanças a que foi submetida ao longo dos anos, pois sua função, talvez a principal causa de sua existência, é ser um dos instrumentos disponíveis em favor do Estado para que ele exerça a função indutora da atividade econômica que lhe é atribuída, com vistas à promoção do desenvolvimento da matriz energética nacional auto suficiente da qual depende a manutenção da atividade econômica em território nacional frente a eventuais choques externos de preço ou de redução da produção internacional de combustíveis.
Suas atividades contribuem para a continuidade das atividades do sistema produtivo nacional, ao assegurar o fornecimento de combustíveis em quantidade e preço adequados à atividade econômica neste território, promover o desenvolvimento de pesquisa científica e a criação de tecnologia e incrementar o parque industrial nacional.
Por isso, o Estado deve manter o controle sobre a companhia. Tratar a Petrobrás como uma companhia aberta comum é negar suas funções dentro da economia brasileira, rejeitar os ditames da política energética nacional esquecer que esta companhia é uma sociedade anônima apenas para como forma de organizar sua atividade e captar recursos para sua expansão.
Para a Petrobrás, a distribuição de dividendos é subsidiária ou secundária na ordem das prioridades da companhia. No entanto, na atual divisão das participações entre Estado, capital nacional e capital estrangeiro, a presença de interesses legalmente respaldados, capazes de pressionar a empresa rumo a políticas de maximização do lucro, resultou em sucessivas distribuições de superdividendos.
Atualmente, a participação dos interesses estrangeiros no capital social da Petrobrás é assegurada por dois mecanismos de participação deste capital na companhia: a aquisição de ações no mercado interno por investimento estrangeiro direto e a aquisição de DRs (Depositary Receipts) no exterior.
O programa de DRs (Depositary Receipts) da Petrobrás está concentrado nos EUA, pela emissão de ADRs (American Depositary Receipts). Pelo Prospecto da Emissão Global de Ações de 2010, emitiram-se ADRs-IPO, com a emissão de ações com colocação direta sob custódia de instituição financeira estrangeira e emissão de ADRs sobre as ações custodiadas, para captação de recursos destinados diretamente à companhia. Desde o início o Programa de ADRs da Petrobrás em 2000, a emissão destes papéis submeteu a companhia à jurisdição estrangeira, onde tramitariam – tramitaram e ainda tramitam – lides contra a companhia, seus diretores e conselheiros e mesmo contra o bloco de controle, o que em si é um contrassenso, pois o acionista controlador é um Estado soberano que se torna, por este mecanismo, submetido.
Este problema é tanto maior quanto maior for o percentual de ações que garantem ADRs dentro da composição do capital social da companhia.
Segundo dados de outubro de 2022, o capital social da Petrobrás é formado por 13.044.201.261 ações, das quais 7.442.454.142 ações são ações ordinárias, com direito a voto nas Assembleias Gerais da companhia; as demais 6.602.042.788 são ações preferenciais (2) , sem direito ao exercício de poderes políticos (voto em Assembleia de Acionistas).
Ainda segundo dados da mesma fonte, a União detém 3.740.470.811 ações ordinárias da companhia, equivalente equivalentes a 50,26% deste bloco de ações (3) . Com esta participação societária, ela exerce o poder de controle sobre as decisões da companhia ao decidir pautas que podem incluir a incorporação, dissolução, transformação, cisão ou fusão da companhia; a participação em outras sociedades e a alienação do controle do capital social das sociedades subsidiárias integrais (4) , direcionando decisões sobre investimento ou desinvestimento, por exemplo.
A posição de controlador da Petrobrás é fixada em lei. O artigo 62 da Lei nº 9478, de 6 de agosto de 1997, assegura à União a manutenção do controle acionário da Petrobrás com a propriedade e posse de, no mínimo, cinquenta por cento das ações mais uma ação do capital votante (5).
Apesar de a União, pessoa jurídica de direito público obrigada a executar a política energética nacional, a Petrobrás ela não tem exercido plenamente a função social a que se destina. Exemplo disso foram as controvérsias em torno do preço dos combustíveis – a chamada Política de Paridade com o mercado Internacional – PPI. Ora, a decisão sobre a política de preço dos combustíveis influencia a apuração do lucro e a distribuição de dividendos da companhia e, com isso direciona a disposição do investidor estrangeiro que aplica recursos no Brasil e daqueles que compram e vendem recibos de ações da Petrobrás no exterior, pressionando o preço destes papéis ao sabor da expectativa dos investidores estrangeiros.
Atualmente, 20,37% do capital social total da companhia está vinculado aos DRs (quase todos eles emitidos nos EUA, logo, ADRs). Em outubro de 2022, 2.110.269.362 ações ordinárias, equivalentes a 28,26% do capital votante da companhia, encontravam-se depositadas como garantia para emissão de ADRs, em sua quase totalidade colocados na NYSE (New York Securities Exchange).
Estes recibos conferem aos seus proprietários o direito de receber os dividendos distribuídos pela companhia. Se emitidos sobre ações ordinárias, conferem também direito de voto nas assembleias de acionistas. Embora as ações custodiadas que lastreiam os ADRs não estejam submetidas ao U.S. Securities Act of 1933 (6) , estes últimos estão submetidos à legislação daquele país e vinculam as relações dele derivadas àquela legislação e jurisdição.
Este programa criou uma modalidade privilegiada de participação do capital estrangeiro na companhia, justamente por dotar os tribunais dos EUA de competência para submeter a companhia, seus diretores e seu acionista controlador às regras de um mercado distinto daquele no qual ela foi criada. O resultado disto é bem conhecido. O interesse do investidor estrangeiro, amparado na legislação dos EUA, deu origem a um conjunto de class actions encerradas com o acordo firmado nos EUA, em que se a Petrobras se comprometeu a pagar pagará US$ 2,95 bilhões em duas parcelas de US$ 983 milhões e uma última parcela de US$ 984 milhões para encerrar todas as ações em tramitação e vedar a propositura de novas ações naquele juízo que tinham ou tenham como objeto pedido indenizatório em função dos atos investigados pela operação Lava Jato (7).
Mas isto não é tudo.
A presença do capital estrangeiro na companhia também ocorre pela aquisição de ações (PETR3 e PETR4) por investidores estrangeiros que aportam seus recursos no mercado de capitais brasileiro. Em outubro de 2022, 13,32% das ações ordinárias e 41,37% das ações preferenciais da Petrobrás eram propriedade de investidores estrangeiros por aquisição dentro do mercado interno, ou seja: 25,37% de todas as ações da Petrobrás foram adquiridas pelo investimento estrangeiro direto dentro do Brasil, sem a necessidade de emissão de ADRs.
Em resumo: 41,68% do capital social total da Petrobrás está submetido ao interesse internacional e confere a seus titulares os dividendos e juros sobre capital próprio a que dão direito as respectivas ações. Voltemos, porém, ao problema da distribuição de dividendos em favor dos titulares de ADRs.
O valor total de pagamentos remetidos aos proprietários de ADRs, computadas apenas a 1ª e a 2ª parcelas de distribuição de dividendos e juros sobre capital próprio durante o ano fiscal de 2022, foi de R$ 27.962.707.223,27 (8). São recursos que representam 20,37% dos dividendos e JCP pagos entre janeiro e setembro deste ano e que só deixarão de ser exportados se houver a recompra destas ações pelo acionista controlador e o encerramento do programa de ADRs.
Estes recursos não são convertidos nem em reinvestimento, nem em consumo dentro do mercado nacional. Mesmo que se diga que à época da emissão dos ADRs existia a necessidade de aumentar o capital social da companhia para que se realizassem investimentos em pesquisa, lavra e refino do petróleo, atualmente a recompra destes papéis, pela União, é a única medida capaz de reduzir essa exportação de recursos, quiçá com vistas à pesquisa de energias limpas ou, no mínimo, menos poluentes.
A recompra dos ADRs também é recomendada sob a perspectiva do preço das ações. A dupla listagem, no caso da Petrobrás, gerou certa correlação entre o preço das ações no Brasil e dos ADRs nos EUA, de modo que a cotação dos papéis da empresa, hoje, é influenciada pelas oscilações dos dois mercados. Esta correlação cria chances de aproveitamento da relação entre as cotações entre ADRs e PETR3 e PETR4 para a prática de arbitragem de preços entre ativos nos momentos de despareamento entre as cotações, estratégia de negociação conhecida como “pair tradings”, que pode também produzir lucro sobre a diferença da taxa cambial no tempo.
Estas estratégias negociais especulativas são lícitas, mas inadequadas para uma sociedade de economia mista controlada por um Estado soberano. Hoje, o Programa de ADRs favorece as pressões exercidas pelos investidores internacionais, em detrimento da persecução dos objetivos a que se vincula o controlador da companhia, submetendo-a a pressões que não condizem com o exercício de sua função social e mesmo com sua causa de existir.
Logo, a aquisição, pela União, das ações que lastreiam os ADRs é medida que impediria a arbitragem sobre a correlação de preços entre as cotações das ações no Brasil e os recibos de depósitos de ações emitidos nos EUA; eliminaria a submissão da companhia à jurisdição estrangeira e reduziria, mesmo que parcialmente, a pressão dos investidores rentistas sobre a política de distribuição de lucros.
Mais do que uma operação de natureza financeira, o encerramento deste programa recolocaria a Petrobrás na condição instrumento do Estado destinado ao cumprimento dos objetivos expressos na Constituição Federal e nos demais diplomas instituidores de normas jurídicas, endereçados à organização do fornecimento de energia e combustíveis, à política energética nacional e à retomada, rumo à consolidação e expansão da atividade industrial em território nacional.
Notas:
1-Este artigo adotou a grafia da razão social da companhia, com acento agudo, anterior à mudança de logomarca dos anos 1990. Para entender esta controvérsia, veja-se o artigo “Nossa Petrobrás é com acento agudo, sim!”, de Maíra Santafé, disponível em https://jornalistaslivres.org/nossa-petrobras-e-com-acento-agudo-sim/, consultado em 07/12/2022.
2-Todas as informações sobre a estrutura de participação no capital social da Petrobrás S.A. contidas neste artigo foram obtidas no site https://www.investidorpetrobras.com.br/visao-geral/composicao-acionaria/, consultado em 30 de novembro de 2022,
3-https://www.investidorpetrobras.com.br/visao-geral/composicao-acionaria/, consultado em 30 de novembro de 2022.
4-Artigo 40 do Estatuto da Petroleo Brasileiro S.A., disponível em: http://transparencia.petrobras.com.br/sites/default/files/Estatuto-Social-AGOE-27-Abril-2017-Portugues.pdf , consultado em 02.12.2022
5-Lei nº 9478, de 6 de agosto de 1997
Art. 62. A União manterá o controle acionário da PETROBRÁS com a propriedade e posse de, no mínimo, cinqüenta por cento das ações, mais uma ação, do capital votante.
Parágrafo único. O capital social da PETROBRÁS é dividido em ações ordinárias, com direito de voto, e ações preferenciais, estas sempre sem direito de voto, todas escriturais, na forma do art. 34 da Lei n° 6.404, de 15 de dezembro de 1976
6-Todas as informações constam no Prospecto, disponível no site https://www.jpmorgan.com.br/content/dam/jpm/global/disclosures/BR/petrobras_prospecto.pdf, consultado em 02 de dezembro de 2022.
7-A informação foi divulgada pela própria companhia em seu sítio institucional em 03 de janeiro de 2018. O texto afirma que a Petrobrás, vítima de atos de corrupção, firmou acordo a fim de encerrar as ações contra si propostas em Nova Iorque, compromentendo-se a pagar vultuosa indenização aos propositores das ações. Informações colhidas em https://petrobras.com.br/fatos-e-dados/assinamos-acordo-para-encerrar-class-action-nos-eua.htm , consultado de 02 de dezembro de 2022.
8-Dados obtidos a partir de informações do sítio site https://www.investidorpetrobras.com.br/acoes-dividendos-e-dividas/dividendos-e-jcp/
Viviane Alves de Morais
Doutora em Direito pela FD-USP; Mestre em História Econômica pela FFLCH-USP.
Pós-Doutoranda em Direito Econômico pela FD-USP