A infiltração contagiosa do fascismo nas polícias não é novidade, tem história. Não basta punir comandantes e substituí-los. É preciso apresentar ao país um diagnóstico dessa realidade, que é dramática e nacional
OUTRASPALAVRA
Em primeiro de janeiro de 2023, Lula subiu a rampa do Planalto com personagens que simbolizam o povo brasileiro. A foto mais bela e comovente da história do país correu mundo, anunciando que o Brasil estava de volta: o melhor de nossa sociedade derrotara o fascismo e se apossara de seu próprio destino. A imagem nem sempre vale mil palavras, como se diz. Aquela, entretanto, prescindia de legendas.
Uma semana depois, no dia 8 de janeiro, golpistas no cio violentaram a institucionalidade democrática, invertendo a imagem inaugural, raptando os símbolos da nacionalidade, depois de terem sequestrado a bandeira. Rasuraram a foto da posse, reencenando a subida da rampa para repetir como farsa a celebração original. Os zumbis bolsonaristas não puseram em marcha qualquer processo dialético: não expressavam compromisso com a superação de contradições; nenhum de seus atos trazia consigo o mínimo sentido de nobreza – às vezes o equívoco porta algum valor digno de reconhecimento. Não foi o caso. Sua missão exclusiva era negar e destruir. Seu plano? Estimular outras mobilizações golpistas, disseminando o pânico, desestabilizando o governo. E sobretudo: quebrar, rasgar, romper, emporcalhar, empilhar ruínas, despojar os símbolos de seu encanto, envenenar a memória da conquista democrática e virar de ponta cabeça a foto que flagrara a glória tão rara e preciosa da vontade popular.
No dia 8, ficou provado: outro Brasil é possível. Mais que isso, real. O país da rapina, da espoliação, do patriarcado sanguinário, da boçalidade obscurantista, do racismo atávico. O avesso do avesso que sonhamos ser. Esse outro Brasil truculento avisou que está à espreita, garras afiadas, preparado para nos assombrar e saltar sobre a democracia frágil que insistimos em reconstruir. Acenou para nós, de trás da vidraça estilhaçada do Supremo; cuspiu em nossa cara, da mesa da Câmara; piscou para nós, que contemplávamos a cena, bestializados, enquanto subia a rampa do Planalto para defecar nos gabinetes, apunhalar a obra de Di Cavalcanti e empastelar a Constituição.
A corja de canalhas invadiu os espaços que abrigam e representam os três Poderes da República não como guerrilheiros dispostos a sacrificar a vida por um ideal político, mas como turistas embriagados no pique-nique do clube de tiro, deslumbrados com a própria ousadia, masturbando-se em selfies que retratavam a audácia tardia de uma adolescência senil. Toda a boçalidade do fascismo bolsonarista estava ali dramaticamente sintetizada: a captura perversa do investimento libidinal de ressentidos. O rapaz exibicionista e inibido, temendo desnudar a idealizada ereção de estuprador, emulado por seu facínora de estimação, abaixa as calças e deposita, ante as câmeras dos celulares, excrementos que serão seu legado, sua declaração de guerra, seu depoimento à posteridade. A escatologia infantil encenada como o cortejo fúnebre e festivo do desejo recalcado.
Deixo a análise para psicanalistas. Trato aqui das implicações políticas mais
imediatas:
(1) O discurso de Lula, ainda no calor dos acontecimentos, embora trôpego pela emoção – mas aí estava sua grandeza –, talvez tenha sido o mais importante que proferiu desde a vitória. Chamou de golpistas, os golpistas; de fascistas, os fascistas; declarou guerra, nos marcos constitucionais, aos sabotadores da democracia – por ação ou omissão –, estejam onde estiverem, mesmo que se tenham aninhado no interior de seu governo.
(2) Salvo melhor juízo e eventuais recuos posteriores do presidente, a fala de Lula corresponde à segunda posse, neste seu terceiro mandato.
(3) O modo como vinha tratando a questão militar e a problemática policial sugeria rendição a supostos imperativos de uma correlação de forças negativa. Em outras palavras: mudar de assunto, não fazer marola, deixar como está para não piorar um quadro ameaçador, na ausência de ideias –planos alternativos – e de meios para implementá-las. Eis as evidências: para o ministério da Defesa, o presidente parece ter desejado nomear um civil que não parecesse um civil, muito menos um civil de um governo popular, comprometido com a subordinação das Forças Armadas à autoridade política, fundada na soberania popular, isto é, no voto. Para a secretaria nacional de Segurança Pública, o ministro da Justiça – na ausência de um ministério da segurança – indicou um político não-reeleito, aparentemente neófito na área, sugerindo que o governo federal não estaria disposto a meter a mão em vespeiros.
(4) A segunda posse de Lula se completará se trocar não necessariamente as pessoas, mas a atitude e a sinalização. A cumplicidade, mais que tibieza, das polícias do Distrito Federal tem caracterizado o comportamento de diferentes polícias nas mais diversas regiões do país, e não apenas das polícias militares. A começar pelas federais. Não basta punir comandantes e substituí-los. É preciso apresentar ao país um diagnóstico dessa realidade que é dramática e nacional. A infiltração contagiosa do fascismo nas polícias não é novidade, tem história. Sua força tem razões amplamente conhecidas. É preciso reverter os mecanismos que reproduzem práticas e valores incompatíveis com o Estado democrático de direito. Desde a promulgação da Constituição, as polícias, com honrosas exceções, formaram um verdadeiro enclave institucional, refratário à autoridade política, com anuência do Ministério Público, cujo dever constitucional – exercer o controle externo da atividade policial – vem sendo sistematicamente descumprido. Daí o genocídio de jovens negros e pobres nos territórios vulneráveis, atravessando décadas, governos e regimes. O governo não pode ter ministérios dos Direitos Humanos e da Igualdade racial, liderados por pessoas extraordinárias, cujos compromissos são incontestáveis, enquanto lava as mãos para a reforma estrutural das polícias. Vamos esperar pela próxima chacina para lamentar e prometer puniros culpados?
É necessário aproveitar o momento de comoção para promover mudança de rumo. Sem jacobinismo, com prudência, sensibilidade e respeito às leis e às instituições, e ao pacto federativo. Mas com nitidez e firmeza, apontando vias concretas de mudança para o curto, o médio e o longo prazos. Temos acúmulo suficiente na sociedade para alimentar o repertório de propostas. Os fascistas se fragilizaram com o espetáculo de sua torpeza. Mas seria um erro subestimar seu potencial destrutivo. Como eu havia escrito em 26 de novembro, “o problema mais urgente do Brasil é a ruptura entre autoridade e poder”. As máquinas anti-democráticas continuam a funcionar, ruminando meios e modos de rasurar a foto mais bela de nossa história.
LUIZ EDUARDO SOARES
Antropólogo, cientista político, escritor e ex-secretário nacional de segurança pública
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